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Transformações na fiscalização agropecuária: revogação da suspensão de atividades pela Lei 14.515

Apesar de ter sido publicada em 2022, a Lei do Autocontrole, grande marco do setor agropecuário, ainda é cercada de inúmeras dúvidas, em boa parte por conta da ausência de regulamentação de importantes dispositivos que redimensionam a fiscalização e o novo regime de penalidades, objeto de constantes discussões administrativas e judiciais.

Uma das principais questões ainda em debate diz respeito aos efeitos da revogação expressa do artigo 2º da Lei nº 7.889/89, em uma reformulação completa do tratamento dos agentes privados regulados, criando novas sanções e eliminando outras, destacando-se neste breve estudo a supressão da penalidade de suspensão de atividades, até então prevista no inciso IV do dispositivo revogado.

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De fato, a penalidade foi extirpada do ordenamento, porque as normas sancionadoras ora tratadas se situam no âmbito do direito administrativo sancionador, atraindo a incidência do mesmo núcleo principiológico do direito penal [1] e respectivas garantias fundamentais, com especial atenção à previsão de retroação da norma mais benéfica, tema este que é relembrado e ratificado com frequência pelo Superior Tribunal de Justiça (RMS 37.031 REsp 1.353.267, AgInt no MS 64.486).

Aliás, a revogação de norma que tipificava determinado fato como infração equivale, sem dúvida alguma, a uma norma mais benéfica, pois como destacou a ministra Regina Helena no STJ, “se a lei superveniente deixa de considerar como infração um fato anteriormente assim considerado, ou minimiza uma sanção aplicada a uma conduta infracional já prevista, entendo que tal norma deva retroagir para beneficiar o infrator” (REsp 1.153.083).

Esta ordem de ideias vem respaldada em outros trechos da Lei do Autocontrole, com destaque para o fato de que, mesmo com a revogação expressa do artigo 2º da Lei nº 7.889/89, a suspensão de atividades subsistiu, mas sendo aplicável de forma muito mais restrita, apenas na forma de medida cautelar pelo Ministério da Agricultura e Pecuária, conforme a previsão de “suspensão temporária de atividade, de etapa ou de processo de fabricação de produto” contida no artigo 26, II, da nova norma, e que não se equipara às penalidades por infração administrativa, previstas inclusive em capítulo diverso.

Ou seja, a suspensão de atividades deixa de ser uma sanção, passando a representar um instrumento do poder de polícia para prevenir risco iminente à defesa agropecuária ou à saúde pública ou em virtude de embaraço à ação fiscalizadora.

Mudanças em penalidades

A conclusão lógica é no sentido de que este novo regime jurídico possui um novo conjunto de sanções e não se confunde com aquele havido na vigência da norma antiga. Foram mantidas apenas algumas penalidades já existentes, criadas outras tantas e, para o que aqui interessa, foram suprimidas algumas delas, incluindo a penalidade de suspensão de atividade.

Ressalta-se ainda que, em obediência à hermenêutica constitucional, não se pode admitir a interpretação analógica ou por extensão da sanção de suspensão de atividades em equiparação à nova penalidade de registro, credenciamento ou habilitação [2], uma vez que “o direito administrativo sancionador está adstrito aos princípios da legalidade e da tipicidade, como consectários das garantias constitucionais”[3], atendendo ao princípio da estrita legalidade contido no artigo 5º, XXXIX, da Constituição, em conclusão já alcançada pelo Superior Tribunal de Justiça ao afirmar que “no âmbito do poder estatal sancionador, penal ou administrativo, não se admite tipificação ou penalização por analogia” (RMS n. 21.922)[4].

Estabelecida a extinção da penalidade de suspensão de atividades, resta compreender o alcance da alteração normativa, em especial com relação aos seus efeitos retroativos.

A limitação imposta a tais efeitos exsurge do texto constitucional, quando da previsão de que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (CF, artigo 5º, XXXVI). De fato, não se pode falar em direito adquirido ao ius puniendi na hipótese, haja vista que a previsão do artigo 5º, XL, do Texto Magno impõe, como medida de rigor, a retroatividade da lei mais benéfica na ótica da hermenêutica constitucional.

Em relação ao ato jurídico perfeito, é de se reconhecer a limitação a todas as situações em que a situação de fato já se mostrou aperfeiçoada, isto é, não mais restam quaisquer efeitos do ato jurídico (tipo infracional), o que se verifica em relação a todas as penas já cumpridas ou em cumprimento, sendo inexigível cessação, reparação ou compensação em relação a estas.

Ratifica este entendimento a redação do artigo 6º, § 1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro[5], destacando que somente são alcançados pela definição de ato jurídico perfeito aqueles direitos que já se encontram plenamente consumados, isto é, esgotados em todos os seus efeitos, não mais pendentes de exercício ou satisfação.

Proteção do julgamento

Finalmente, a limitação mais impactante será a proteção da coisa julgada, entendida somente como as situações sobre as quais haja decisão imutável e indiscutível não mais sujeita a recurso ou impugnação perante o Poder Judiciário. Este foi o entendimento recentemente exarado pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, ao analisar matéria muito próxima àquela aqui em estudo, concluindo na oportunidade que:

“A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior.” (Tema 1.199, ARE 843.989)

Conclui-se, assim, que o efeito retroativo da norma mais benéfica será medida cogente para todas as situações em que não haja decisão acobertada pelo ato jurídico perfeito ou pela autoridade da coisa julgada, independentemente da existência ou não de decisões outras nas esferas judicial ou administrativa, pois “não há violação a ato jurídico perfeito ou, ainda, a direito adquirido, porquanto não esgotado o prazo decadencial para anulação do ato impugnado” (STJ, AgRg no RMS 19.838).

O presente estudo permite, enfim, compreender que a retroatividade da norma mais benéfica é preceito constitucional plenamente aplicável à sanção de suspensão administrativa, respeitada a limitação imposta pela proteção à coisa julgada, alcançando-se as seguintes conclusões:

Desde a entrada em vigor da Lei nº 14.515/22, não se admite a fixação da penalidade de suspensão de atividade com base no artigo 2º, IV, da Lei nº 7.889/89, seja na qualificação de auto de infração ou em processo administrativo sancionador, independentemente da data da infração;

Também não se admite a aplicação da penalidade de suspensão de registro, de credenciamento ou de habilitação por analogia à suspensão de atividades, em obediência ao princípio da estrita legalidade;

A expressa revogação do artigo 2º, IV, da Lei nº 7.889/89, alcança a todos os atos infracionais praticados na vigência do texto anterior da lei, exceto nas hipóteses em que haja condenação transitada em julgado na esfera judicial ou quando esgotado o prazo decadencial para anulação do ato impugnado.

Destaca-se, finalmente, que a revogação da penalidade aqui tratada não atinge outras sanções que tenham sido concomitantemente fixadas e que não tenham sido revogadas, como as de multa ou advertência, ainda que previstas na mesma decisão administrativa ou judicial.

 


[1] “Reconhece-se a natureza administrativa de uma infração pela natureza da sanção que lhe corresponde, e se reconhece a natureza da sanção pela autoridade competente para impô-la. Não há, pois, cogitar de qualquer distinção substancial entre infrações e sanções administrativas e infrações e sanções penais. O que as aparta é única e exclusivamente a autoridade competente para impor a sanção” (Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 32ª ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2015, p. 871).

[2] Lei nº 14.515/22. Art. 27. O agente que incidir em infração prevista na legislação específica e em normas regulamentares relativas à defesa agropecuária ficará sujeito às seguintes penalidades, isolada ou cumulativamente: (…)
IV – suspensão de registro, de cadastro ou de credenciamento;

[3] Fábio Medina Osório in Direito Administrativo Sancionador, RT, 2000. In: REsp 879.360.

[4] No mesmo sentido: “a analogia não pode ser aplicada in malam partem, porque no âmbito do Direito Administrativo sancionador.” (REsp 1.216.190).

[5] “DEL. nº 4.657/42. Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.
§ 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. (…)”

Fonte: Conjur

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