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STF x STJ: controvérsia da tributação da taxa Selic nos tribunais superiores

As controvérsias em torno da tributação da taxa Selic não são novidade no âmbito dos tribunais superiores. Ainda em 2013, o STJ apreciou a questão da incidência de IRPJ e CSLL sobre a Selic recebida nas devoluções de depósitos judiciais e repetições de indébito tributário.

O recurso, REsp 1.138.695, gerou duas teses distintas, os Temas 504 e 505 do STJ, os quais previam, respectivamente, que “[o]s juros incidentes na devolução dos depósitos judiciais possuem natureza remuneratória e não escapam à tributação pelo IRPJ e pela CSLL” e “[o]s juros incidentes na repetição do indébito tributário, inobstante a constatação de se tratarem de juros moratórios, se encontram dentro da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, dada a sua natureza de lucros cessantes, compondo o lucro operacional da empresa”. Já em outra oportunidade, no julgamento do REsp 1.470.443/PR, o STJ definiu a tese do Tema 878, segundo a qual, como regra geral, os juros de mora possuem natureza de lucros cessantes, sendo permitida a tributação pelo imposto de renda.

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Assim, em um primeiro momento, a Selic poderia ter três naturezas distintas para o STJ, a depender da situação concreta: juros moratórios na qualidade de lucros cessantes, como regra geral, incluindo os casos de repetição de indébito; excepcionalmente, juros moratórios na qualidade de danos emergentes; e juros remuneratórios, no caso da devolução de depósitos judiciais. Porém, a controvérsia não parou aí, mas foi levada ao crivo do STF, que promoveu mudanças no que foi definido pelo STJ. Mas antes, para melhor compreender as mudanças jurisprudenciais sobre a matéria, deve-se analisar os fundamentos que motivaram as conclusões do STJ, especialmente nos temas 504 e 505, os mais impactados — ou ao menos deveriam ser — pela decisão da Suprema Corte.

O REsp 1.138.695 abrangia dois objetos de discussão: a incidência (ou não) do IRPJ e da CSLL sobre a Selic recebida na repetição de indébito e na devolução de depósitos judiciais. Em seu voto condutor, o relator, ministro Mauro Campbell, analisou a natureza jurídica dos juros em discussão, estabelecendo que, no caso dos depósitos judiciais, os juros não são pagos em razão de uma demora no pagamento que deve ser indenizada, mas, sim, em razão de depósito voluntariamente efetuado pelo contribuinte em instituição financeira, submetendo-se à remuneração legalmente estabelecida. Portanto, para o ministro, esses valores não possuem natureza indenizatória, mas sim remuneratória.

Quanto às repetições de indébito, o relator reconheceu que os juros são devidos em razão da mora. Contudo, ainda que se trate de verba indenizatória, o valor da Selic, em seu entendimento, teria natureza jurídica de lucros cessantes, o que configuraria acréscimo patrimonial. Foram fixadas, então, as teses dos Temas 504 e 505.

Posteriormente, a matéria foi submetida à análise do STF, no RE 1.063.187, que julgou a incidência do IRPJ e da CSLL sobre os juros Selic decorrentes das repetições de indébito. Naquela ocasião o resultado foi diferente do que entendia o STJ, sendo fixada a seguinte tese do Tema 962 de repercussão geral: “[é] inconstitucional a incidência do IRPJ e da CSLL sobre os valores atinentes à taxa Selic recebidos em razão de repetição de indébito tributário”.

No STF, o relator, ministro Dias Toffoli, destacou que o imposto de renda incide sobre proventos de qualquer natureza, e a contribuição social, sobre o lucro. Para ambos os casos, o ministro destaca que a doutrina vincula esses fatos geradores ao acréscimo patrimonial.A partir dessa premissa, Toffoli analisa a natureza jurídica da Selic, classificando-a como juros de mora, uma indenização pelo atraso no pagamento. Essa indenização pode ser relativa a lucros cessantes ou danos emergentes, diferenciação relevante, pois, caso se trate de lucros cessantes, deverá ser tributada pelo imposto de renda, uma vez que substitui o incremento patrimonial que o lesado teria se não tivesse sofrido o dano, configurando acréscimo patrimonial. Já os valores recebidos a título de danos emergentes apenas recompõem o patrimônio desfalcado sem configurar acréscimo patrimonial, escapando da incidência do imposto.

Recomposição de perdas

Ao analisar a Selic recebida nas repetições de indébito, Toffoli entendeu que se trata de recomposição de efetivas perdas, sem incrementar o patrimônio do credor, configurando danos emergentes. Para fundamentar a sua conclusão, o relator destaca que não só as pessoas físicas, mas também as pessoas jurídicas utilizam o dinheiro para organizar as suas finanças. Assim, a demora na restituição do indébito tributário faz com que o credor busque meios alternativos ou mesmo heterodoxos para atender às suas necessidades, os quais atraem juros, multas, outros passivos, outras despesas ou mesmo preços mais elevados. A Selic, portanto, tem o condão de indenizar esses danos.

No julgamento dos embargos de declaração opostos no mesmo recurso extraordinário, o STF esclareceu que o Tema 962 diz respeito somente às repetições de indébito, pois não era objeto da demanda a definição da natureza jurídica dos juros incidentes sobre os casos relativos a depósitos judiciais ou dos juros combinados entre particulares. A limitação do alcance da tese decorreu não das premissas fixadas no julgamento, mas, sim, das limitações impostas pelo caso concreto que deu origem ao tema de repercussão geral.

Mesmo assim, o STJ, ao realizar o juízo de retratação no bojo do REsp 1.138.695, procedeu com a reforma somente do Tema 505, de modo a afastar a incidência do IRPJ e da CSLL sobre a Selic nas repetições de indébito tributário, mantendo inalterada a tese do Tema 504, sobre a incidência desses tributos sobre a Selic dos depósitos judiciais. O argumento foi de que o Tema 962, ao versar exclusivamente sobre as repetições de indébito, teria excluído as demais situações em que há recebimento de juros moratórios da necessidade de afastar o IRPJ e a CSLL, entendimento do qual esta autora ousa discordar.

A limitação temática do Tema 962 foi imposta pelo caso concreto que deu origem ao Tema 962, já que ali não se discutia a tributação dos juros Selic sobre os depósitos judiciais, mas, sim, sobre os indébitos tributários. Ora, o julgador não pode ir além do pedido e da causa de pedir, conforme limitação imposta pelo art. 492 do CPC. A questão submetida ao julgamento do STF dizia respeito aos juros recebidos nas repetições de indébito, sendo esse o objeto de sua decisão. Nada impede, porém, que o próprio STF analise outras questões correlatas, como, por exemplo, “qual é a natureza jurídica dos juros Selic nos casos referentes a depósitos judiciais?”. São temas que ainda estão em aberto perante o STF.

Ao se analisar os fundamentos determinantes do voto do ministro Dias Toffoli quanto aos danos provocados pela indisponibilidade dos valores a quem lhes faz jus, verifica-se que a mesma lógica se aplica aos depósitos judiciais, quantia que não pode ser acessada pelo depositante até que lhe seja autorizado judicialmente. A indisponibilidade do valor depositado judicialmente provoca os mesmos danos do atraso no pagamento na repetição de indébito, também obrigando a utilização de meios alternativos de obtenção de recursos financeiros, como empréstimos, cheque especial, linha de cartão de crédito, etc. Assim, seguindo a lógica do STF, os juros Selic na devolução de depósitos judiciais devem ser entendidos como danos emergentes, como na repetição de indébito.

Não é essa, porém, a lógica que vem adotando o STJ, que, após o juízo de retratação no REsp 1.138.695, seguiu emitindo decisões que contrariam as expectativas geradas pelo Tema 962 do STF. Em agosto de 2023, a 1ª  Turma daquele tribunal superior decidiu que incidem IRPJ e CSLL nos juros moratórios devidos em atrasos de contratos entre particulares, novamente entendendo que a decisão do Tema 962 do STF não teria o condão de alterar as demais teses do STJ.

Incidência dos tributos

Mais recentemente, pouco antes do tradicional recesso forense de meio de ano dos Tribunais Superiores, o STJ julgou o Tema 1.237, que versava sobre a incidência do PIS e da Cofins sobre a Selic recebida na repetição de indébito tributário, devolução de depósitos judiciais e nos pagamentos em atraso em contratos particulares.

Novamente, o STJ decidiu pela incidência dos tributos, fixando a seguinte tese: “[o]s valores de juros, calculados pela taxa Selic ou outros índices, recebidos em face de repetição de indébito tributário, na devolução de depósitos judiciais ou nos pagamentos efetuados decorrentes de obrigações contratuais em atraso, por se caracterizarem como receita bruta operacional, estão na base de cálculo das contribuições ao PIS/Pasep e Cofins cumulativas e, por integrarem o conceito amplo de receita bruta, na base de cálculo das contribuições ao PIS/Pasep e Cofins não cumulativas”.

Mais uma vez, o STJ retomou a sua jurisprudência no sentido de que a Selic possui natureza (i) de juros remuneratórios na devolução de depósitos judiciais, (ii) juros moratórios na qualidade de lucros cessantes no atraso de pagamento em contratos particulares, e (iii) juros moratórios na qualidade de danos emergentes nas repetições de indébito. Para o tribunal, todas essas variações se incluem no conceito de receita bruta operacional, base de cálculo do PIS e da Cofins.

Nesse caso, nem mesmo os juros da repetição de indébito escaparam da tributação. Isso porque, para o STJ, o conceito de receita bruta operacional abarca “o aumento do valor do crédito das pessoas jurídicas contribuintes em razão da aplicação de determinada taxa de juros, seja ela qual for, por força de lei ou contrato, atrelada ou não a correção monetária (como o é a taxa Selic), proveniente de ato lícito (remuneração) ou ilícito (mora) [1]“.

Essa recente decisão também conflita com o que fora decidido pelo STF no Tema 962 e com o próprio conceito de receita. Isso porque, contabilmente, a receita bruta operacional é representada pela riqueza nova, resultado de operações da atividade fim da empresa ou do emprego de recursos próprios [2]. Se, conforme entendeu o STF, a Selic apenas recompõe o patrimônio, sem incrementá-lo, como poderia integrar a receita? E mais: o entendimento do STJ ao julgar a tributação da Selic pelo PIS/Cofins conflita também com o entendimento do STF no Tema 69, conhecida como a “tese do século”, que excluiu o ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins.

O aspecto relevante do acórdão do Tema 69 foi o conceito constitucional de faturamento — ou receita bruta operacional — delineado pelo STF, que compreende a percepção de valores “oriundos do exercício da ‘atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou serviços’ (venda de mercadorias e de serviços) [3]”. Da leitura do acórdão do referido recurso, percebe-se que não é possível incluir a Selic nesse conceito, justamente por se tratar de valor recebido em razão da mora no pagamento, não da atividade econômica da empresa, sem sequer configurar incorporação de montante novo ao patrimônio, mas mera recomposição.

O que tem se observado, porém, é uma sequência de mitigações dos entendimentos do STF favoráveis ao contribuinte — tanto o Tema 962 como o Tema 69 —, o que frustra as expectativas geradas ao tempo do seu julgamento. Ainda que os objetos de ambos os recursos fossem específicos, esperava-se que o mesmo entendimento fosse replicado aos casos análogos. Contudo, parece haver uma resistência de cada um dos três poderes a admitir deduções das bases de cálculo dos tributos em questão, começando pelas modulações de efeitos realizadas pelo próprio STF nos Temas 69 e 962, passando pela MP 1.202/2023, convertida na Lei 14.873/2024, a qual limita a compensação de créditos tributários oriundos de decisões judiciais, culminando nas decisões mais recentes do STJ que, utilizando-se de argumentos que colidem com os fundamentos usados pelo STF e, ouso dizer, adulteram conceitos contábeis adotados pelo Direito, permitem a tributação de verbas indenizatórias como se renda ou receita fossem.

Ao que parece, a esperança que ainda resta ao contribuinte é aguardar uma eventual apreciação da controvérsia pelo STF, sob uma perspectiva constitucional, e esperar que a Suprema Corte seja coerente com a sua jurisprudência e retome os fundamentos determinantes que ensejaram as teses dos Temas 69 e 962 para julgar a demanda.

 


[1] REsp n. 2.065.817/RJ, relator Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, julgado em 20/6/2024, DJe de 25/6/2024 – Trecho do voto do relator.

[2] De acordo com Ricardo Mariz de Oliveira (2013, p.415), caracterizam receita os ingressos incorporados definitivamente ao patrimônio da pessoa jurídica, que representam riqueza nova, “e que represente remuneração ou contraprestação de atos, atividades ou operações da pessoa titular do mesmo, ou remuneração ou contraprestação do emprego de recursos materiais, imateriais ou humanos existentes no seu patrimônio ou por ele custeados” In: Sistema Constitucional Tributário – Dos fundamentos teóricos aos ‘hard cases’ – Estudos em Homenagem ao Ministro Luiz Fux”. Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2013

[3] RE 574706, Relator(a): Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, julgado em 15-03-2017, Acórdão Eletrônico Repercussão Geral – Mérito DJe-223, divulgado em 29-09-2017, publicado em 02-10-2017 – Trecho do voto da relatora.

 

Fonte: Conjur , Freepik/Gesrey

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