Em 1979, o professor Alcides Jorge Costa inaugurava, no que viria a ser uma das grandes obras da doutrina tributária brasileira [1], a taxonomia do ICM (predecessor do ICMS) sob o crivo científico. Nesta obra, o autor define de forma precisa o ICM como um tributo sobre valor acrescido do ponto de vista econômico, isto é, que visa gravar apenas a parcela de riqueza agregada do bem circulado desde a fonte de produção até a sua entrega ao consumo:
“Este tributo, como imposto sobre valor acrescido, foi concebido para onerar, de maneira uniforme, o preço final das mercadorias, isto é, o preço de venda a consumidor, daí decorrendo que se trata de imposto que não cria incentivos à integração vertical das empresas.” [2]
Tratava-se idealmente de um imposto sobre o consumo em linha com a experiência internacional da época, calcado, portanto, pela neutralidade tributária (sob o manto da não cumulatividade). André Mendes Moreira [3] destaca a neutralidade como ponto nevrálgico de discussão no panorama global na segunda metade do século 20, figurando hoje como diretriz central das políticas recomendadas pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD International Guidelines VAT/GST [4] e OECD Consumption Trends 2022 [5]).
Mais tarde, com o advento da Constituição de 1988, que promoveu a sucessão do ICM pelo ICMS, o professor Alcides passara a enunciar, em um pequeno texto publicado em 2014, que no Brasil “não existe imposto sobre valor acrescido que não tenha um resíduo cumulativo” [6]. Essa última afirmação contempla em si o que veio a se erigir como uma das contradições centrais do ICMS e que merecerá, para compreensão do leitor, uma maior abertura contextual a partir de agora.
Dessa afirmação decorre que a neutralidade tributária idealizada, denotada pela classificação econômica do ICMS enquanto um imposto sobre o valor acrescido, contrapôs-se à sua visualização fática, aferida pela inexistência de uma não cumulatividade plena [7] atrelada ao imposto, embora prevista no artigo 155, §2º, I, da CF/88:
“Artigo 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
[…]
§2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:
I – será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal.”
Ou seja, não é de hoje que se conhece o ICMS como um tributo que permitiria o pleno aproveitamento do seu montante recolhido na entrada (enquanto crédito), garantindo assim a não cumulatividade sob a sistemática “imposto sobre imposto”, como bem explica a doutrina, a exemplo de Roque Carrazza [8] e Misabel Derzi [9].
Contudo, o que se cultivou após a consagração do princípio da não cumulatividade do ICMS na Constituição importará em redobrada atenção do leitor. Vivenciou-se, ao longo dos últimos 40 anos, incontáveis discussões colaterais, nos Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, envolvendo a possibilidade do aproveitamento — e consequente restrição — quanto à tomada de créditos de ICMS.
Desse modo, seja pela ventilação de balizadas equivocadas, a exemplo da delimitação do direito creditório apenas aos denominados “créditos físicos” [10], como pela recorrente prorrogação da possibilidade de creditamento sobre a aquisição de mercadorias destinadas ao uso ou consumo, energia elétrica e serviços de comunicações [11], nunca se vislumbrou o ICMS em linha com a experiência internacional.
O que se viu durante esses anos, portanto, foi a contenção do seu creditamento por cada um dos Poderes republicanos na proporção de suas competências, impossibilitando a plenitude da não cumulatividade[12]. Não obstante, diversamente das discussões atinentes à restrição ao crédito, foi possível verificar outro “resíduo cumulativo” atrelado ao imposto, diametralmente oposto, mas também deletério, no cerne da não cumulatividade tupiniquim.
Como tributo de competência estadual, sua amorfia e heterogeneidade no território nacional, decorrente das diferentes formas de captura dos fatos signos de sua hipótese pelos entes federativos, provocaram um grave efeito de acúmulo de créditos pelos contribuintes.
A problemática do acúmulo de créditos pode, então, ser dividida em duas feições do ponto de vista prático: a primeira relaciona-se aos motivos que geram essa situação, enquanto a segunda refere-se às limitações estabelecidas para aproveitamento dos saldos acumulados.
Verifica-se, em regra, a geração deste acúmulo como consequência da garantia constitucional de manutenção dos créditos de exportação [13], da anatomia da sistemática da substituição tributária para frente e do consequente reflexo nas operações interestaduais [14], bem como da manutenção de créditos, pela legislação dos Estados, em operações isentas e não tributadas. Estes são apenas alguns dos principais fatores que acarretam o acúmulo tratado.
Já em relação às limitações para o seu pleno aproveitamento (utilização como moeda de pagamento), cabe mencionar a previsão, nas legislações de diversos estados, de comandos restritivos à possibilidade de transferência dos saldos acumulados a terceiros e de fruição por estes após transferidos [15]. Especificamente no que toca os saldos creditórios provenientes de operações de exportação, testemunha-se uma clara afronta ao estatuído pelo artigo 25, §1º, II, da Lei Kandir [16].
Certas restrições já foram contestadas no Judiciário, sendo tema pacificado em favor dos contribuintes na jurisprudência do STJ — em que pese com ressalvas —, como se observa do julgado no REsp nº 1.505.296 [17], colacionado abaixo:
“PROCESSO CIVIL. ICMS. CRÉDITOS DECORRENTES DE OPERAÇÕES DE EXPORTAÇÃO. APROPRIAÇÃO E TRANSFERÊNCIA DOS SALDOS CREDORES. INEXISTÊNCIA DE SALDO CREDOR DECLARADO PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. LEI COMPLEMENTAR N. 87/96 (‘LEI KANDIR’).
1. Recurso especial em que se discute a possibilidade de aproveitamento dos créditos de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços decorrentes de operações de exportação, já reconhecidos pelo Estado de São Paulo, para fins de uso, apropriação e transferência para terceiros.
2. Hipótese em que o Tribunal de origem consignou que, embora existentes os créditos decorrentes de exportação, não há saldo credor de ICMS no caso, uma vez que há débito no valor de R$65.461.977,59 em nome da parte recorrente.
3. Exige-se a existência de saldo credor para fins de incidência do §1° do artigo 25 da ‘Lei Kandir’. A aplicação do dispositivo normativo pressupõe saldo de créditos superior aos débitos para que ocorra o aproveitamento.
4. Por determinação legal, a operação de compensação de débitos com créditos ocorre anteriormente a qualquer outra operação (caput do artigo 25). Ao final, havendo saldo de créditos de ICMS, abre-se a possibilidade de apropriação, utilização ou transferência pelo contribuinte (§§1° e 2° do artigo 25). O aproveitamento desse saldo, quando embasado no §1° do artigo 25 da Lei Complementar nº 87, não pode ser limitado por lei estadual. ‘Por ser autoaplicável o §1º do artigo 25 da Lei Complementar nº 87/96, e sendo os créditos oriundos de operações disciplinadas no artigo 3º, inciso II, do mesmo normativo, ‘não é dado ao legislador estadual qualquer vedação ao aproveitamento dos créditos do ICMS, sob pena de infringir o princípio da não-cumulatividade, quando este aproveitamento se fizer em benefício de qualquer outro estabelecimento seu, no mesmo Estado, ou de terceiras pessoas, observando-se para tanto a origem no artigo 3º’. Nesse sentido: AgRg no AREsp 187.884/RS, relator ministro Arnaldo Esteves Lima, Primeira Turma, DJe 18/6/2014; AgRg no AREsp 151.708/RS, relator ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 14/6/2012; AgRg no REsp 1.247.425/MA, relator ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 16/9/2011; RMS 13.969/PA, Primeira Turma, relator ministro Francisco Falcão, DJ de 4.4.2005; RMS 13544/PA, relatora ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 19.11.2002, DJ 2.6.2003, p. 229.
5. Os créditos de ICMS da parte recorrente, embora decorrentes de operações de exportação, submetem-se à compensação do caput do art. 25 da “Lei Kandir”, não havendo falar em saldo credor. Não fere o princípio da não cumulatividade a lei estadual que veda a apropriação e a utilização de crédito de ICMS ao contribuinte que estiver com saldo devedor perante o fisco.”
Recurso especial improvido.
No entanto, é inegável mencionar que os Entes federativos envidam esforços na criação de diferentes formas de balizas que seguem constringindo o pleno aproveitamento mediante transferência dos créditos derivados de exportações, em especial, àqueles contribuintes que não se socorreram pela via judicial.
Dado esse retrospecto (negativo) que delineia a estrutura da tributação do consumo brasileira até hoje, vale tratar agora do que está por vir e que se avizinha sob iniciativa da PEC 45/2019, em relação ao tratamento conferido a esses resíduos cumulativos do passado.
De antemão, contudo, deve-se reconhecer e exaltar a iniciativa da reforma tributária consubstanciada em torno da PEC 45/2019, a qual visa reconstruir em bases sólidas, atuais e simplificadas, a tributação do consumo no Brasil, hoje tão distante do que se identifica no mundo.
Dito isso, de acordo com redação aprovada pela Câmara de Deputados da referida PEC [18], o ICMS será extinto a partir de 2033 [19], nos termos do artigo 129 do ADCT, dando lugar ao IBS e à CBS. Em atenção a esse desfecho, foi cunhada previsão para garantir o aproveitamento dos saldos credores de ICMS existentes ao final de 2032, conforme preceitua o artigo 134:
“Artigo 134. Os saldos credores relativos ao imposto previsto no art. 155, II, da Constituição Federal existentes ao final de 2032 serão aproveitados pelos contribuintes na forma deste artigo.”
No entanto, para que os saldos credores sejam, de fato, aproveitados ou ressarcidos, o §1º do referido artigo 134 estabelece a necessidade de homologação de tais montantes pelos entes federativos. Estes, por outro lado, deverão se pronunciar acerca dos créditos em prazo a ser estabelecido por Lei Complementar, como se depreende da leitura do inciso I do §1º:
“Artigo 134. […]
§1º O disposto neste artigo alcança os saldos credores cujo aproveitamento ou ressarcimento sejam admitidos pela legislação em vigor e que tenham sido homologados pelos respectivos entes federativos, observado o seguinte:
I – apresentado o pedido de homologação, o ente federativo deverá pronunciar-se no prazo estabelecido na lei complementar;
II – na ausência de resposta ao pedido de homologação no prazo a que se refere o inciso I, os respectivos saldos credores serão considerados homologados.
§2º O disposto neste artigo também é aplicável aos créditos do imposto referido no caput deste artigo que sejam reconhecidos após o prazo nele estabelecido.”
Como é sabido, todavia, a partir do que se constata pelo histórico do ICMS, conferir essa responsabilidade ao legislador infraconstitucional e ao Ente federado envolve, no seu bojo, abrir margens a distorções e eventuais atropelos do direito ao pleno aproveitamento dos saldos acumulados pelos contribuintes. Invariavelmente, portanto, a atual redação da PEC 45/2019 cede espaço a um cenário de potencial insegurança jurídica e, porventura, de intensa juidicialização do tema no período pós-reforma.
Aos contribuintes, caberá analisar e implementar, desde já, mecanismos que possibilitem a monetização de seus resíduos cumulativos, a fim de evitar incertezas quanto à fruição ao imperativo da não cumulatividade, há tanto tempo assegurada pela Constituição, muito embora também há muito tolhida no Brasil.
Fonte: Conjur