PIS/Cofins e agronegócio: frete e a Súmula Carf 217

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Deixando de lado, momentaneamente, os temas da reforma tributária, vamos tratar de uma relevante discussão voltada para os tributos PIS/Cofins, no regime não cumulativo, mais, especificamente, o frete entre estabelecimentos, tendo em vista sua relevância para o setor do agronegócio, principalmente, diante da recente edição da Súmula 217 do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

Com todo respeito, temos aqui um exemplo do que não se deve fazer na formação de precedentes vinculantes, mesmo que administrativos, muito menos como se deve interpretar e aplicar.

 2. A discussão relacionada ao frete ‘entre estabelecimentos’

Como é de conhecimento, no regime de PIS/Cofins cumulativo, por força constitucional (artigo 195, § 12, CF), cabe ao legislador estabelecer a concessão de créditos básicos a fim de concretizar a determinação constitucional de não cumulatividade. Neste sentido, entre as hipóteses de crédito está o artigo 3º, IX, da Lei nº 10.833/2003, que reconhece a viabilidade deste direito quanto ao “frete na operação de venda, nos casos dos incisos I e II, quando o ônus for suportado pelo vendedor”.

Em interpretação ao referido dispositivo, surgiram diversas hipóteses e circunstâncias, algumas se consolidaram com maior facilidade pelo creditamento, por outro lado, outras nem tanto. Isto porque, quando se trata de frete entre estabelecimentos do mesmo contribuinte de produtos acabados, mas que serão utilizados como insumo para elaboração de outro produto ou mesmo durante este procedimento, o direito ao crédito é inequívoco [1].

A discussão, todavia, torna-se mais polêmica quando há dúvida a respeito da continuidade do processo produtivo (“atividade”) do contribuinte ou mesmo da operação de venda.

Nesta hipótese, numa interpretação restritiva, defendida, principalmente, pela Receita Federal, sustenta-se a impossibilidade do crédito quanto ao frete, uma vez que a operação entre estabelecimentos do mesmo contribuinte de um produto acabado não cumpriria os requisitos do artigo 3º, I e IX, da Lei nº 10.833/2003, ou seja, não teríamos processo produtivo e muito menos operação de venda. De outro lado, existe posicionamento no sentido de que seria possível o gozo deste direito, diante de vários elementos, entre eles:

1) a premissa é a não cumulatividade, sendo uma atividade que foi tributada pelo PIS/Cofins, caberia o crédito; 2) seja na venda de mercadorias ou transporte de insumo, a atividade econômica do contribuinte, em nenhum momento, encerraria sem o transporte do produto, notadamente, quando o frete é de sua responsabilidade; 3) mesmo nos deslocamentos entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, por razões variadas, entre elas logísticas, que compõe a atividade empresarial, isto se dá com o objetivo da venda, não se podendo interpretar somente como o ato final da “operação”; 4) ao tratar no inciso IX da armazenagem e frete, nota-se que o próprio legislador pressupôs que poderia haver uma etapa interligada ao transporte com a armazenagem do produto, não se pretendendo autorizar este direito somente para a venda “direta”; 5) – a interpretação há de levar em consideração todo o contexto e conjunto da operação do contribuinte, inclusive, as peculiaridades em concreto do contribuinte; 6) – negar este crédito seria estabelecer a cumulatividade, quando a regra é a não cumulatividade [2].

3. Jurisprudência Carf e Súmula 217: origem e críticas

Tratando-se, portanto, de tema controvertido, o Carf, diante de autos de infração e glosas de compensação, foi provocado em recursos a analisar a questão.

A jurisprudência sobre esta discussão sempre foi oscilante nas Turmas Ordinárias, até que tivemos, smj, os primeiros julgamentos pela Câmara Superior [3][4][5] favoráveis aos contribuintes [6], embora em decisões de períodos mais recentes desfavoráveis [7].

Sem pretensão de realizar uma análise sob a ótica da quantidade de julgamentos, sobretudo, da Câmara Superior, é inegável que, a partir dos precedentes inaugurais, aquele órgão, destinado à uniformização da jurisprudência do Carf se posicionou favorável ao frete entre estabelecimentos de produtos acabados, com uma mudança para negar o crédito, inicialmente, por voto de qualidade, em períodos mais recentes.

Fato é que, para a surpresa da maioria, apesar de um tema controvertido, com relevante histórico de decisões da Câmara Superior favoráveis aos contribuintes, que, por obvio, não justificaria a edição de súmula, foi levada à votação e, por maioria, aprovada [8], tornando-se a de número 217:

Súmula Carf nº 217

“Os gastos com fretes relativos ao transporte de produtos acabados entre estabelecimentos da empresa não geram créditos de Contribuição para o PIS/Pasep e de Cofins não cumulativas.

Acórdãos Precedentes: 9303-014.190; 9303-014.428; 9303-015.015”.

Como já dito, o típico exemplo do que não se deve fazer na formação de precedentes, ou seja, editar uma súmula como orientação e direcionamento para julgamento aos conselheiros a respeito de um tema completamente controvertido, com inúmeras decisões favoráveis aos contribuintes ao longo do tempo, especialmente, da Câmara Superior.

Para se demonstrar, ademais, a fragilidade desta súmula, não representando em momento algum a jurisprudência do Carf, muito menos dominante, basta observar que: (1) – ao longo do histórico de decisões da CSRF, o posicionamento era favorável aos contribuintes; (2) – as decisões desfavoráveis surgem em período recente, inclusive, por voto de qualidade inicialmente; (3) – a aprovação do enunciado desta súmula foi, por maioria, com o voto de uma única conselheira dos contribuintes, que, em julgados, quando, ainda compunha a Turma Ordinária, reconhecia o direito ao crédito [9].

A grande verdade é que estamos vivendo um período de erosão dos direitos fundamentais e básicos dos contribuintes [10], de tal sorte que as instituições que deveriam resguardá-los à luz do texto constitucional e legal, no caso do Carf, estão agindo nitidamente favorecendo ao Estado Leviatã, em descompasso com o interesse público primário, buscando simplesmente atingir metas de arrecadação [11].

4. A distinção para temas ligados ao agronegócio

Apesar do nítido equívoco e críticas à edição da Súmula 217, cabe-nos esclarecer sua inaplicabilidade a certas operações relacionadas ao setor do agronegócio.

O primeiro exemplo que utilizaremos está fundado no julgamento da 3ª Seção, 3ª Câmara, 2ª Turma Ordinária, que, por unanimidade, reconheceu o direito ao crédito entre estabelecimentos de produtos acabados a uma empresa do setor [12]. Vejamos trecho do voto:

“A Recorrente, por sua vez, sustenta que seriam gastos com transporte para transferências de produtos dentro da mesma filial ou entre filiais, sendo tanto para transferência do material colhido na produção agrícola até o armazém quanto de insumos entre unidades filiais, representando, assim, etapa imprescindível para o seu processo produtivo. Com razão a Recorrente. Conforme consta do Laudo Técnico juntado, os produtos transportados nos fretes internos relacionado à colheita seriam principalmente grãos de soja e milho, enquanto aqueles relacionados à transferência de insumos entre filiais seriam os defensivos agrícolas, tais como inseticidas, herbicidas, fungicidas, além de grãos de milho e soja.

(…)

A venda é o momento em que o sujeito passivo aufere a receita que será tributada, de modo que, até aquele momento, os gastos essenciais e relevantes para que tal operação possa ser executada devem ser reconhecidos como insumos. Conforme demonstrado pela Recorrente, o frete entre as unidades se faz necessário e imprescindível como gasto inserido na logística de movimentação e até mesmo na própria qualidade dos grãos destinados a venda, representando, portanto, etapa essencial à atividade produtiva. Daí, o seu enquadramento como insumo. Nesse contexto, verifica-se que o serviço de transferência interna configura etapa indispensável para que a mercadoria chegue em condições adequadas aos seus principais locais de venda, representando gasto essencial para que se concretize o objetivo final da produção: a venda. Em outras palavras, o frete mesmo entre estabelecimentos, vincula-se diretamente à atividade produtiva, devendo ser considerado, portanto, como insumo.”

Esta decisão é relevante para exemplificar que, dentro das operações voltadas ao segmento do agronegócio, o processo produtivo e as peculiaridades existentes, no caso, comprovados até mesmo por laudo, geram uma distinção da súmula editada, não sendo possível, simplesmente, aplicá-la ao caso concreto.

Outro tema de maior importância que, pasmem, tem sido submetido à Súmula 217 do Carf diz respeito ao frete na formação de lote para fins de exportação [13][14].

Mais uma vez, reiterando o respeito pelo tribunal e conselheiros, um grave e inexplicável equívoco!! E as razões são inúmeras, para sua inaplicabilidade e cautela: (1) – a uma, por ser uma interpretação que onera as exportações e causa a cumulatividade,  já dá indício de não ser a melhor interpretação; (2) – a duas, por onerar a cadeia do agronegócio, que há de ser exonerada e/ou mitigada; (3) – a três, pelo equívoco quanto à expressão “processo produtivo”, uma vez que na cadeia de exportação aquele somente se encerra com a entrega do produto agropecuário dentro do navio ou no exterior [15]; (4) – a quatro, em geral, na prática, quando do envio para recintos ou armazéns alfandegários para formação de lote, já se operou um contrato de compra e venda, ou seja, o produto já está vendido a um comprador no exterior, sendo tal frete exatamente de uma operação de venda [16]; (5) – a cinco, a formação de lote, especialmente, no agronegócio, não é uma mera escolha ou liberalidade, sendo imprescindível por questões de logística, infraestrutura e prática de mercado; (6) – a seis, os acórdãos utilizados para edição da súmula, em momento algum, discutem exatamente a formação de lote exportação, sobretudo, os aspectos aqui relacionados nas razões de decidir, sendo inaplicável ao setor.

5. Considerações finais

Sem perder a esperança, desejamos que o Carf reavalie a presente Súmula 217, principalmente, para o setor do agronegócio, uma vez que existem inúmeras peculiaridades em sua atividade que impõem inaplicabilidade, reconhecendo, no caso concreto, a viabilidade do crédito de PIS/Cofins.

 


[1] – Art. 176, VIII, IN 2.121/2022.

[2] Já tivemos oportunidade de tratar sobre o tema muito tempo atrás: CALCINI, Fábio Pallaretti. PIS/COFINS. Não cumulatividade. Frete e a questão do creditamento. “in” Tributação Indireta Empresarial. MACEDO, Alberto. CASTRO, Leonardo Freitas de Moraes e. São Paulo: Quartier Latin, 2016. p.297-312.

[3] “NÃO CUMULATIVIDADE. COMBUSTÍVEIS E LUBRIFICANTES. TRANSPORTE DA MATÉRIA-PRIMA DO LOCAL DE EXTRAÇÃO AO PARQUE FABRIL. TRANSPORTE DA MÃO-DE-OBRA DO PARQUE FABRIL. TRANSPORTE DO PRODUTO ACABADO ATÉ O PORTO PARA EMBARQUE AO EXTERIOR. DIREITO AO CRÉDITO. As indústrias podem constituir créditos de PIS/Pasep pela sistemática não cumulativa sobre os dispêndios com combustíveis e lubrificantes dos veículos utilizados no transporte dos insumos, da mão-de-obra do parque industrial e do produto final até o local de entrega para embarque ao exterior” (CARF, CSRF, Ac. 9303­004.175, j. 05/07/2016).

[4] “CRÉDITOS. DESPESAS COM FRETE. MOVIMENTAÇÃO DE PRODUTOS EM FABRICAÇÃO OU ACABADOS ENTRE ESTABELECIMENTOS DO CONTRIBUINTE. As despesas com fretes para transporte de produtos em elaboração e, ou produtos acabados entre estabelecimentos do contribuinte, pagas e/ ou creditadas a pessoas jurídicas, mediante conhecimento de transporte ou de notas fiscais de prestação de serviços, geram créditos básicos de Cofins, a partir da competência de fevereiro de 2004, passíveis de dedução da contribuição devida e/ ou de ressarcimento/compensação. Precedentes (CARF, CSRF, 3ª T, Ac. 9303004.318, j. 15/09/2016.)

[5] Antes da análise do próprio frete do art. 3º, IX, a Câmara Superior havia julgado sob a perspectiva dos combustíveis como insumo em sentido contrário ao contribuinte (CARF, CSRF, Ac. 9303­003.154 , j. 25/11/2014 – voto de qualidade), alterando em decisão posterior (CARF, CSRF, Ac. 9303­003.477, j. 25/02/2016).

[6] Após estes julgamentos, tivemos outros posteriores também favoráveis: CARF, CSRF, Ac. 9303­006.632, j.  11/04/2018; CARF, CSRF, Ac. 9303­006.728, j. 15/05/2018; CARF, CSRF, Ac. 9303­007.285, j. 15/08/2018; CARF, CSRF, Ac. 9303-009.714, j. 16/10/2019; CARF, CSRF, Ac. 9303-010.147, j. 12/02/2020; CARF, CSRF, 3º T, Ac. 9303005.156, j. 17/03/2017; CARF, CSRF, 3º T, Ac. 9303-010.724, j. 17/09/2020; CARF, CSRF, ac. 9303-013.339, 20/09/2022.

[7] CARF, CSRF, Ac. 9303-013.920, j. 16/03/2023 (voto de qualidade); CARF, CSRF, Ac. 9303-014.428, j.17/10/2023.

[8] Importante conferir a votação: 17ª PROPOSTA DE ENUNCIADO DE SÚMULA Os gastos com fretes relativos ao transporte de produtos acabados entre estabelecimentos da empresa não geram créditos de Contribuição para o PIS/Pasep e de Cofins não cumulativas. Acórdãos Precedentes: 9303-014.190; 9303-014.428; 9303-015.015. Manifestação contra a aprovação: Oswaldo Gonçalves de Castro Neto e Tatiana Josefovicz Belisário Manifestação a favor a aprovação: Semíramis de Oliveira Duro Resultado da votação: APROVADA por maioria, vencidos os conselheiros Tatiana Josefovicz Belisário, Denise Madalena Green e Oswaldo Gonçalves de Castro Neto. Numeração sequencial recebida: 217

[9] A título exemplificativo: CARF, 3ª Seção, 3ª Câmara, 2ª Turma, Ac. 3301-011.232, j. 25/10/2021.

[10] https://www.conjur.com.br/2024-nov-24/o-declinio-dos-direitos-fundamentais-do-contribuinte-e-a-jurisprudencia-do-stf/

[11] Vale lembrar do recente “Show do Trilhão” e a manifesta preocupação das entidades com a técnica e imparcialidade do CARF, que deve buscar ser um Tribunal paritário e revisor da legalidade, não se curvando à pressão dos governantes para fins arrecadatórios. https://www.aasp.org.br/noticias/aasp-em-acao/entidades-assinam-manifesto-em-defesa-do-carf-como-orgao-legitimador-e-imparcial/

[12] CARF, AC. 3302-014.643, j. 19/06/2024.

[13] “TRANSPORTE DE PRODUTOS ACABADOS ENTRE ESTABELECIMENTOS DA MESMA PESSOA JURÍDICA PARA FORMAÇÃO DE LOTES DE EXPORTAÇÃO. CREDITAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA CARF N° 217.A negativa do crédito de frete de produtos acabados, ainda que para a formação de lotes de exportação, resta pacificada no âmbito deste Conselho, em razão da edição da Súmula CARF n° 217, aprovada pela 3ª Turma da CSRF, em sessão de 26/09/2024 (vigência em 04/10/2024): “Os gastos com fretes relativos ao transporte de produtos acabados entre estabelecimentos da empresa não geram créditos de Contribuição para o PIS/Pasep e de Cofins não cumulativas.” (CARF, CSRF, Ac. 9303-016.206, 18/11/2024).

[14] Sobre o tema já tivemos oportunidade de tratar nesta coluna: https://www.conjur.com.br/2024-set-20/exportacoes-e-credito-de-pis-cofins-do-frete-na-formacao-de-lote/

[15] CARF, 3ª Seção, Ac. 3401-012.659; CARF, 3ª Seção, 4ªC/1ªTO, j. 29/02/2024; CARF, 3ª Seção, Ac. 3102-002.523 –1ªC/2ª TO, j.18/06/2024.

[16] CARF, 3ª Seção, Ac. 3401-009.071, j. 25/05/2021.

Fonte: Conjur

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