O setor deve enfrentar embates complexos, sobretudo no âmbito legislativo e judiciário, envolvendo temáticas sensíveis e vitais para o seu desenvolvimento e plena produção de alimentos no país
O ano de 2023 foi marcado por grandes conquistas para a agropecuária brasileira e para economia do país, na mesma proporção em que foram os desafios enfrentados pelo setor, que atravessou intensos debates técnicos e instabilidades jurídicas, em temas vitais como direito de propriedade, impactos da reforma tributária, seguro rural, mudanças climáticas e meio ambiente, além dos entraves decorrentes das relações exteriores, sobretudo quanto a competitividade mercadológica.
Logo no início do ano, a reestruturação ministerial, com mudanças no Serviço Florestal Brasileiro (SFB), gestão do CAR (Cadastro Ambiental Rural), até discussões sobre a transferência de competência da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) para a pasta do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), que repercutiu em divergências substanciais sobre a efetividade e capacidade técnica e operacional das mudanças propostas pela nova gestão para o setor.
Ainda no primeiro semestre, assistimos a uma onda de invasões de terras de movimentos sociais, com registro recorde de mais de 61 casos entre janeiro e julho, de acordo com levantamento elaborado pela Confederação de Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), em propriedades em todo território nacional, com ênfase para os Estados de Goiás, Bahia, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Paraná, Pará, São Paulo, Tocantins, incluindo uma unidade da Embrapa, vinculada ao Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) em Pernambuco, invadida duas vezes, em abril e julho.
O cenário de insegurança no campo, resultou em imediata instauração de CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) na Câmara dos Deputados, a fim de apurar e investigar os responsáveis por financiar, liderar e executar as recorrentes invasões de propriedade privada em todo território nacional, bem como questionar a inércia de posicionamento e ações enérgicas do governo federal para controlar e combater a situação.
No âmbito judiciário, acompanhamos longos impasses jurídicos sobre o Marco Temporal da demarcação de terras indígenas, em julgamento com repercussão geral, e a celeuma sobre aplicação da Lei da Mata Atlântica (Lei Federal nº 11.428/2006) em áreas rurais consolidadas, previsto no Código Florestal Brasileiro (Lei Federal nº 12.651/2012) questionada por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6446 no STF, que culminaram em decisões desfavoráveis para o setor.
Legislação
No plano legislativo, vimos avanço positivo das tramitações da Lei Geral do Licenciamento Ambiental (PL 2.159/2021), Mercado de Carbono (PL 2148/2015) e Bioinsumos (PL 3.668/2021), além da aprovação de uma Reforma Tributária, fruto de razoável consenso e com menor impacto para o setor agropecuário e cooperativas agrícolas.
Apesar do saldo positivo de conquistas, a perspectiva para 2024 é pouco otimista, e o setor deve enfrentar embates complexos, sobretudo no âmbito Legislativo e Judiciário, envolvendo temáticas sensíveis e vitais para o seu desenvolvimento e plena produção de alimentos no país, a começar pelos desdobramentos da Lei do Marco Temporal sancionada em outubro, incluindo a derrubada dos vetos presidenciais em dezembro, que pacifica a interpretação do art. 231 da Constituição Federal, quanto ao reconhecimento da demarcação a partir de 1988, sobre o uso e a gestão de terras indígenas.
Todavia, mesmo com entrada em vigor após passar pelas duas casas legislativas com placar de votação expressivo, a legislação foi imediatamente questionada por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7582 no STF, pelos partidos PSOL e Rede e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
“Não tenho dúvida de que esse é um hard case, mas sob o ponto de vista técnico, retomar uma discussão no STF já superada pelo Congresso Nacional decorrente de aprovação expressiva da Lei 14.701/2023, é uma esquizofrenia jurídica, e cria um precedente que fragiliza a eficácia do nosso processo legislativo e das nossas leis.
Para além de configurar sobreposição do poder judiciário em relação a competência do legislativo, também contraria a decisão de aprovar a Lei, incluindo a derrubada dos vetos, que superou o quórum de aprovação de uma PEC, com total de 374 votos no parlamento. “
A discussão hoje tramita no STF sob a relatoria do Ministro Gilmar Mendes, ainda sem data prevista para julgamento. De outro lado, a fim de garantir a estabilidade jurídica do tema e a manutenção da eficácia da Lei do Marco Temporal, foi ajuizada Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 87 pelos partidos Progressistas, Liberal e Republicanos.
Agravante a este cenário, a recente decisão do ministro Edson Fachin, vice-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da Ação Cível Originária (ACO) 3555, que suspendeu, no último dia 15/01, todas as ações judiciais que impediam a demarcação da Terra Indígena Tekoha Guasu Guavira, na região de Guaíra, no Paraná.
Além de revogar todas as decisões que impediam a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) de dar andamento ao processo de demarcação do território, reforçando a insegurança jurídica no país e a fragilidade da eficácia das nossas leis.
Na mesma linha de insegurança jurídica para o setor, permeia a discussão sobre a Lei 14.785/2023 (Defensivos), aprovada pelo Senado Federal depois de duas décadas de tramitação, que trata do controle, inspeção e fiscalização de defensivos no Brasil, contudo, sancionada com 14 vetos presidenciais considerados indispensáveis para simplificação e operacionalidade técnica da lei.
Entre os trechos vetados, estão a atribuição do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) para os casos de reavaliação de eventuais riscos dos defensivos e análise técnica para promover alterações nos registros; a dispensa das empresas incluírem nas embalagens o nome e a advertência de que o recipiente não pode ser reaproveitado; além da criação de uma taxa para avaliação de registros.
A matéria ambiental também deve repercutir em 2024, com discussões sobre a efetiva implementação do Código Florestal com relação ao instituto da compensação ambiental, travada no STF para definir o conceito de “identidade ecológica”, inexistente no ordenamento jurídico brasileiro, bem como na doutrina especializada. O julgamento, marcado para o final do mês de janeiro, impõe barreiras para a compensação ambiental, criando um novo critério de “identidade ideológica”, contrariando a disposição do Código Florestal, que prevê “o mesmo bioma” para compensação de Reserva Legal (RL) em áreas convertidas até 22 de julho de 2008.
Entre os impactos mais sensíveis para o setor em decorrência da decisão do STF, estão: revisão de todo arcabouço normativo que trata do instituto da compensação de Reserva Legal em mais de 17 estados federativos; edição de nova regulamentação sobre o instrumento da Cota de Reserva Ambiental (CRA) no âmbito federal e estadual; revisão normativa sobre regularização fundiária de unidades de conservação federal por meio de compensação de Reserva Legal pelo ICMBio; entrave para alavancagem de instrumentos econômicos ambientais como a Cota de Reserva Ambiental (CRA) e Pagamento por Serviços Ambientais (PSA).
Ademais, há uma tendência latente do aumento de insegurança jurídica com relação à regularização fundiária de Unidades de conservação para compensações de RL já realizadas; potencial afogamento do judiciário com ações para àqueles produtores rurais lesados que tiverem suas compensações anuladas; consequente fragilização do Código Florestal quanto a sua implementação efetiva e retrocesso da regularização ambiental dos imóveis rurais no país.
Precedente
O julgamento sobre “identidade ecológica” cria um precedente temerário para o nosso ordenamento jurídico vigente, ao discutir um conceito inexistente na nossa legislação e na doutrina especializada, além de contrariar a alavancagem do mercado de serviços ambientais no país.
Por fim, a recente publicação da Portaria nº 884 do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, que revoga 05 (cinco) programas federais de PSA: Floresta +, Floresta + Carbono, Empreendedor, Bioeconomia e Agro, também reforçam a preocupação sobre o desestímulo a regularização ambiental e ao mercado de serviços ambientais no Brasil.
Todo esse contexto em matéria ambiental é agravado pelas novas exigências e barreiras não tarifárias impostas ao Brasil por outros países, como a União Europeia (UE), a exemplo da Lei Antidesmatamento (Regulation on deforestation-free products), que entrou em vigor em junho de 2023, todavia, sua aplicação efetiva ocorre a partir de dezembro de 2024.
Esse cenário de asfixia do setor agropecuário em diversas áreas, para além da insegurança jurídica, provoca inevitável instabilidade econômica para o país e pesa no bolso do consumidor brasileiro, além de oferecer ambiente atrativo para que outros países criem exigências que extrapolam relações diplomática e comercial saudáveis.
Portanto, a perspectiva para o curto ano de 2024, em virtude das eleições municipais em outubro, deve ser palco de grandes embates jurídicos, no âmbito Executivo, Legislativo e Judiciário, envolvendo temas vitais e sensíveis para o setor agropecuário brasileiro, com reflexo direto para a economia do país, razão pela qual é indispensável o monitoramento efetivo e participação do setor privado e sociedade civil, a fim de mitigar danos não só para os setores atingidos, mas também como forma de garantir o equilíbrio da economia.
*Marcela Pitombo é head de relações institucionais de ESG da MoselloLima Advocacia e Consultora Jurídica
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Fonte: GloboRural