Ação deve provocar debate sobre a implementação de direitos sociais e o reconhecimento de omissões.
A reforma agrária foi um dos temas mais discutidos na Assembleia Constituinte de 1987/1988. O capítulo que trata do tema foi fruto de um intenso debate e fonte de grandes divergências, mas o texto final deixa claro o desafio de combater a concentração fundiária por meio de medidas redistributivas que atenuem as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, I e II, c/c art. 184 c/c 188).
A Constituição de 1988 traz expressamente a noção de que a propriedade rural deve cumprir a sua função social, sob pena de não merecer a proteção constitucional e ser sancionada com a desapropriação. A reforma agrária consiste em direito fundamental, a ser efetivado por políticas públicas e ações positivas do poder público, de cujo dever não pode abdicar.
Durante décadas, a atuação de movimentos sociais mantém acesa a busca pela implementação da reforma agrária, a despeito da resistência de diversos setores econômicos e das limitações administrativas dos órgãos federais.
O próprio sistema de justiça tem sido um fator impeditivo à sua concretização, seja por interpretações que sobrevalorizem a propriedade privada – inclusive a que não cumpre a função social –, seja pela imposição de entraves burocráticos ao andamento de processos expropriatórios.
No governo Bolsonaro, a reforma agrária simplesmente parou. A promessa de não dialogar com os movimentos sociais do campo e de não instruir processos de reforma agrária em andamento, ao arrepio da Constituição, foi materializada em documentos e atos.
Um dos principais exemplos é o Memorando nº 01/2019, da Presidência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que estabeleceu o sobrestamento de vistorias para a aferição da função social, o que impede, na prática, a obtenção de novas terras por desapropriação.
Além disso, o Incra passou a desistir de processos administrativos e judiciais, sob a alegação de falta de recursos ou desinteresse nas áreas, e destinou previsão orçamentária pífia à obtenção de terras. O orçamento da autarquia para o ano de 2020 reduziu a quase zero diversas funções importantes[1], o que é confirmado pela afirmação em relatório de que a obtenção de terras não é uma prioridade[2].
Por outro lado, o mandamento constitucional (art. 188) que estipula a destinação prioritária de terras públicas à reforma agrária, medida que não implicaria dispêndio de recursos, vem sendo solenemente ignorado pela União.
O Incra reforça a omissão ao deixar de intervir em processos judiciais ou negar a formalização de assentamentos nessas áreas, sob a fundamentação de que “não há interesse”, como se ele pudesse abster-se do seu papel constitucional.
Com isso, ocupações e assentamentos em formação passam a viver um cenário de insegurança jurídica, com aumento da vulnerabilidade e acirramento de conflitos.
A não destinação de terras públicas para a reforma agrária favorece a grilagem dessas terras para a extração de recursos por terceiros, como madeireiros e garimpeiros, além de facilitar a invasão de espaços que demandam especial proteção, como unidades de conservação.
Segundo informação da própria autarquia, 413 processos estão paralisados[3]. Além disso, 187 casos em fase final que aguardam apenas a imissão na posse não tiveram andamento.
Segundo o Incra, a medida é fruto de uma decisão consciente: a reforma agrária não pode se limitar à obtenção de terras[4], devendo envolver a titulação de assentamentos existentes, a regularização fundiária e a operacionalização de créditos para os trabalhadores rurais.
Sucede que a reforma agrária pressupõe o enfrentamento urgente da desigualdade do Brasil rural, como bem colocado pela Oxfam Brasil: enquanto as grandes propriedades correspondem a 0,91% do total dos estabelecimentos rurais brasileiros e abragem 45% de toda a área rural, os estabelecimentos com área inferior a 10 hectares representam mais de 47% do total de estabelecimentos e ocupam menos de 2,3% da área total[5].
Diante dessa paralisação e da omissão sistemática do governo federal, o processo de implementação da política de reforma agrária foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF).
No dia 9 de dezembro, a Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultores Familiares (Contag), a Confederarção dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Brasil (Contraf) e mais cinco partidos (PT, PSB, PSOL, PcdoB e Rede) propuseram arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) que busca pôr um fim às medidas que inviabilizam a reforma agrária no país.
A ADPF 769 – a ADPF da reforma agrária – pede ao Supremo Tribunal Federal (STF) que declare a inconstitucionalidade das medidas que suspenderam vistorias destinadas à obtenção de terras e determine ao Incra que promova uma análise individualizada de cada processo, de forma a identificar as necessidades orçamentárias e encaminhar soluções.
A ação pede tambem ao STF que impeça a desistência de processos judiciais de desapropriação nos quais tenha havido pagamento de indenização e determine ao INCRA que empreenda os esforços necessários para garantir a imissão na posse de imóveis em processos judiciais pendentes e a garantia de destinação prioritária de terras públicas para a reforma agrária. Pede-se ainda a elaboração de um plano nacional de reforma agrária e a recomposição orçamentária da matéria.
Em diversos campos – como na pauta indígena, na reforma agrária e no meio ambiente –, o esvaziamento de direitos fundamentais e instituições por meio de interpretações restritivas da Constituição tem legitimado a paralisação de políticas públicas essenciais para a transformação social e a construção de uma sociedade mais justa e solidária.
O Judiciário é uma trincheira indispensável na superação das omissões do Poder Público, sob pena de naturalização do cenário de implosão das normas constitucionais. Ainda que não se dedique à tarefa de implementar as políticas, a corte tem a missão de reconhecer o cenário de omissão sistemática e monitorar as medidas a serem adotadas, devendo contar com a participação da sociedade nessa tarefa.
Com isso, o STF pode desempenhar um papel fundamental de aprofundamento dos canais democráticos no exercício da jurisdição constitucional, sobretudo quando eles estão duramente bloqueados.
A ADPF 769, sob a relatoria do ministro Marco Aurelio, deve provocar um importante debate sobre a implementação de direitos sociais e a necessidade de atuação firme da corte no reconhecimento de omissões do gênero. Além disso, a ADPF pode exigir a fixação de comandos que assegurem a efetivação da política pública.
Nesse contexto, o reconhecimento do cenário de paralisação da reforma agrária é imprescindível, mas pode ser insuficiente, devendo ser acompanhado de mecanismos de seguimento para monitorar o cumprimento das decisões.
A experiência da ADPF 347, que tratou do estado de coisas inconstitucional no sistema prisional, indica que o Judiciário deve não apenas declarar o cenário de omissão sistemática, mas também adotar mecanismos de seguimento para o caso.
A tramitação da ADPF 709, por sua vez, que tratou de políticas de saúde para povos indígenas na pandemia, mostra que o diálogo institucional deve ter parâmetros claros, de modo a evitar a postergação no cumprimento de obrigações por parte da União.
Na linha de outras experiências no sul global[6], os mecanismos de seguimento podem consistir em relatorias especiais, audiências públicas, monitoramento de índices de efetivação da reforma agrária e acompanhamento da evolução da destinação de terras públicas para a política pública, entre outras medidas.
A jurisdição constitucional está sendo chamada mais uma vez a desempenhar um papel singular em contexto de crise na efetivação de direitos. No caso da reforma agrária, a obstrução da pauta e a falta de diálogo do Executivo com os movimentos sociais impõem ao STF o papel central de guardião da Constituição e garantidor da efetividade de suas decisões.
[1] “Bolsonaro incrementa verba para ruralistas e reduz quase a zero a reforma agrária”. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/09/bolsonaro-incrementa-verba-para-ruralistas-e-reduz-quase-a-zero-a-reforma-agraria.shtml> Acesso em 1 de novembro de 2020.
[2] Incra – Relatório de gestão – 2019. Disponível em: <http://www.INCRA.gov.br/media/docs/relatorio-gestao/INCRA-2019.pdf>.
[3] Informação prestada por meio do Ofício nº 59729/2020/GABT-1/GABT/GAB/P/SEDE/INCRA-INCRA.
[4] “Reforma agrária não é só criar assentamento”. Disponível em: <https://www.poder360.com.br/opiniao/governo/reforma-agraria-nao-e-so-criar-assentamentos-por-geraldo-melo-filho/>. Acesso em 4 de novembro de 2020.
[5] Disponível em: <https://rdstation-static.s3.amazonaws.com/cms/files/115321/1596831720relatorio-terrenos_desigualdade-brasil_0-2.pdf>. Acesso em 1 de novembro de 2020.
[6] Nesse sentido, podem ser citadas as experiências de cortes do sul global, como a da Corte colombiana no caso dos desplazados (Sentencia T-025/2004), da Corte indiana no caso sobre direito à alimentação (PUCL vs Union of India and Others.PUCL, Writ Petition (Civil) No. 196 of 2001 ) e da Corte sul-africana no caso Grootboom (Corte Constitucional da África do Sul. Government of the Republic of South Africa. & Ors v Grootboom & Ors 2000 (11) BCLR 1169. (CC).