Tributação na internet 3.0

A evolução da Internet 3.0 e dos metaversos traz novos desafios para a aplicação da legislação tributária.

Muito tem se falado sobre os metaversos e o advento da Internet 3.0, e sobre como essas inovações –aliadas à tecnologia de blockchains, cryptoativos e NFTs (tokens não fungíveis)– podem representar a próxima revolução tecnológica, social e comercial, capazes de alterar a vida online como a conhecemos.

Imagem de exemplo

De maneira geral, os metaversos podem ser definidos como espaços virtuais (ou de realidade aumentada) coletivos em que pessoas e organizações poderão interagir das mais variadas formas, e realizar os mais variados tipos de transações econômicas envolvendo serviços e ativos digitais –tais como, justamente, cryptoativos e NFTs.  Exemplos claros podem ser observados na proliferação de metaversos (e ações realizadas em metaversos) durante o período de isolamento social na recente pandemia do COVID19.

Em paralelo, vemos o desenvolvimento da chamada Internet 3.0, termo utilizado para descrever a nova geração da Internet, mais voltada para a geração de conteúdos e processos personalizados, na qual indivíduos deverão ter maior controle sobre os seus próprios dados e ativos digitais, dentro de um contexto de interoperabilidade de plataformas –ou seja, espera-se que os dados e ativos digitais possam acompanhar o usuário nas muitas plataformas e metaversos que utilizar, inclusive para fins econômicos, o que ainda não é uma realidade efetiva.

Ao voltarmos nossa análise para o Brasil, vemos que a legislação tributária brasileira –em nível federal, estadual ou municipal– simplesmente não está preparada para a realidade econômica de criptoativos e NFTs e, muito menos, para os maiores desafios que serão impostos pela progressiva migração de atividades econômicas para os ambientes de metaversos e para a realidade da Internet 3.0.

Longe de uma crítica, isso é a simples constatação de um fato que pode ser percebido a partir da análise de um exemplo singelo:  a realização de shows musicais no ambiente de um metaverso.

Segundo informa a mídia especializada, os metaversos[1] têm se tornado importantes espaços de divulgação para artistas[2] que, especialmente nesses tempos de pandemia, optaram por realizar apresentações inteiramente virtuais a milhões (sim, milhões) de pessoas que, sem saírem do conforto e privacidade de suas residências, puderam apreciar os espetáculos, interagir com outros participantes, consumir bens e serviços (virtuais) relacionados ao artista ou à plataforma, e assim movimentaram milhões (sim, novamente milhões) de dólares em dinheiro do mundo não-virtual[3].

As cifras envolvidas mostram que o exemplo pode ser singelo, mas os contornos econômicos que circundam essa nova realidade certamente não o são.  E aqui começam as dificuldades para a aplicação das atuais regras tributárias brasileiras caso essas novas interações dos metaversos sejam transpostas para a nossa realidade.  (Em verdade, já foram, pelo menos em parte.  Mas, por enquanto, poucos perceberam.)

Imaginemos, por exemplo, que um desses vários shows ocorridos num metaverso tivesse sido realizado por um artista nacional –alguém muito conhecido no Brasil, mas com pouca projeção internacional, apenas para ficar claro que a audiência virtual seria majoritariamente brasileira[4]– que, do conforto e privacidade de sua residência, realizou um espetáculo musical acompanhado por milhões de brasileiros que, igualmente instalados no conforto e privacidade de suas residências, consumiram não apenas o show, mas, também, diversos bens e serviços digitais relacionados (como skins para seus avatares, NFTs comemorativos, acesso a maiores níveis de interação etc.).

Como seria a tributação de tudo isso?  Caso a residência (física) do artista nacional esteja localizada no território nacional, será que o Município no qual essa residência está localizada teria alguma pretensão legítima de exigir o ISS sobre a receita do espetáculo?  Ou sobre o cachê do artista?  Ou será que os Municípios legitimados a realizar essa cobrança seriam aqueles em que residem os muitos fãs que pagaram pelo ingresso do show?  E se o show tiver entrada franca, e a receita decorrer apenas da venda de bens e serviços digitais?  E se o artista nacional fizer o show de sua residência localizada em outro País?  Aliás, onde mesmo o show foi realizado?  Será que os Estados e o DF poderiam exigir algum ICMS sobre essa operação, especialmente sobre ativos digitais?

Por mais complexas que essas questões todas pareçam, trata-se apenas a ponta do iceberg, pois as questões jurídicas tendem a ficar progressivamente mais complexas se voltarmos a nossa atenção ao referido item “venda de bens e serviços digitais”.

A começar, novamente, pela localidade.  Assumindo que alguns desses bens e serviços digitais se revelem passíveis de tributação pelo ICMS ou pelo ISS, a quem cabe o imposto?  Ao Estado ou Município em que o artista reside?  Àqueles em que os fãs residem?  A ninguém, caso o artista resida no exterior e/ou o show tenha sido realizado por intermédio de um metaverso estrangeiro, cuja plataforma não possui representação nacional?  Caso exista tributação, quem recolherá os impostos?  O artista?  Os fãs?  Os intermediários (plataformas com presença nacional, empresas de cartão de crédito etc.)?  E se os “pagamentos” forem realizados em criptomoedas, sem “passarem” pelo sistema financeiro tradicional?

Para tornar isso tudo ainda mais complexo:  e se o artista, atento às novas tendências, premiar alguns de seus fãs com bens digitais únicos (sim, NFTs…), tais como representações exclusivas de aspectos da performance, arte gráfica relacionada ao artista, skins exclusivas para seus avatares etc.?  Será que os fãs precisariam informar alguma coisa em suas declarações de imposto de renda, na parte de bens e direitos?

E esses itens digitais se valorizarem, e alguns fãs resolverem vende-los?  Essa venda seria tributada como uma operação envolvendo serviços?  Ou mercadorias?  Ou apenas um direito?  Há rendimento tributável pela tabela progressiva (até 27,5%), ou ganho de capital sujeito a alíquotas progressivas (até 22,5%)?  E se os adquirentes forem estrangeiros?  E se for o contrário:  imaginemos que o fã vendedor seja um estrangeiro, e que o adquirente (importador?) desses ativos digitais seja um fã brasileiro, que vai “pagar” pela operação com criptomoedas?

Como facilmente se verifica por este exemplo, e pelas provocações que o acompanham, existe um mundo novo se desenvolvendo com surpreendente rapidez.  E, se confiarmos nas previsões mais moderadas, dentro de poucos anos a chamada economia virtual atingirá patamares superiores às operações congêneres da economia não-virtual, que poderão cair em progressivo desuso.  Em outras palavras, é crível que logo teremos mais shows virtuais do que não-virtuais, para não fugir da hipótese mencionada acima.

Entretanto, parece bastante claro que nossa legislação tributária –já severamente pressionada pela realidade atual, e incapaz de lidar adequadamente com a simples venda de um eBook, ou com os desafios do cloud computing– caminhará a passos ainda mais largos para a obsolescência, porquanto aferrada a fatos geradores pensados para um mundo com fronteiras bem definidas, operações físicas facilmente identificáveis, e pagamentos realizados por meio do sistema financeiro.  No curto prazo, é crível que esse tipo de arrecadação tributária sofra uma queda considerável.

Longe de pretender oferecer uma solução, este breve artigo visa apenas explicitar alguns dos contornos mais desafiadores daquilo que está por vir.  Ao longo das próximas semanas, em mais três artigos, analisaremos aspectos tributários específicos e pontuais dessa nova realidade proporcionada pelos metaversos, passando pelos NFTs e, finalmente, por interações entre as economias virtual e não-virtual.

[1] https://www.forbes.com/sites/paultassi/2020/04/23/fortnites-travis-scott-concert-was-a-stunning-spectacle-and-a-glimpse-at-the-metaverse/?sh=27b1fd352e1f

[2] https://einvestidor.estadao.com.br/investimentos/investidores-metaverso-justin-bieber

[3] https://medium.com/our-world-tomorrow/how-the-metaverse-is-becoming-a-massive-revenue-stream-for-artists-7beb6d668c04

[4] O ponto é evidenciar que o show poderia ter sido realizado em um espaço físico bem delimitado, com participação presencial de cidadãos brasileiros, da maneira como estamos acostumados.

Fonte: JOTA

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