Tem sido agitado o início de janeiro deste ano de 2022 pelas constantes liminares concedidas por juízes de primeira instância para suspender a exigibilidade do Difal-ICMS nas operações interestaduais em que o destinatário não é contribuinte do tributo estadual.
Como se sabe, a EC nº 87/2015 alterou a redação do inciso VII do §2º do artigo 155 da Constituição, passando a permitir a tributação pelo estado de destino mediante aplicação do diferencial de alíquotas, a operação interestadual de circulação de mercadorias.
Também é sabido que essa norma inicialmente foi regulada pelo Convênio nº 93/2015 do Confaz, e que foi declarada inconstitucional pelo STF no julgamento da ADI nº 5.464 e RE nº 1.287.019, pois entendeu a corte que as alterações constitucionais demandam regulação por lei complementar, mas os efeitos da decisão seriam protraídos para o exercício de 2022.
Diante disso, os estados passaram a editar as competentes leis locais, ainda no ano de 2021 [1], para instituir a cobrança do Difal-ICMS. Entretanto, a Lei Complementar nº 190/2022, que foi editada para suprir a lacuna normativa apontada pelo STF, foi publicada somente no último dia 5, o que vem lastreando decisões liminares de suspensão da exigibilidade, por ofensa ao artigo 150, III, “b” e “c”, da Constituição.
Apesar de as decisões seguirem no mesmo sentido, o argumento da anterioridade não se mostra adequado. É que, como dito, as leis estaduais foram publicadas ainda no ano de 2021, cumprindo a exigência do texto constitucional das alíneas “b” e “c” quando expressam “publicada a lei que os instituiu ou aumentou”. Não foi a LC nº 190/2022 que instituiu o Difal, portanto, não é sobre ela que versa a anterioridade ou a anterioridade nonagesimal.
O ponto é que as leis estaduais foram editadas sem lei complementar prévia, como exigido pelo Supremo Tribunal Federal. Isso, a bem da verdade, representa invasão de competência do legislador complementar pelos legisladores estaduais. Como não havia lei nacional estabelecendo os limites do ICMS-Difal, nenhuma lei estadual poderia instituí-lo.
Essa questão remonta à ampliação da base de cálculo da Cofins pela Lei nº 9.718/1998, das receitas operacionais (faturamento) para todas as receitas da empresa. Naquele caso, a Emenda Constitucional nº 20/1998, que alterou a redação do inciso I do artigo 195 da Constituição, deveria ter precedido a lei ordinária. Como foi publicada posteriormente, questionou-se se a emenda promoveu “constitucionalidade superveniente” ou se a lei teria sido “natimorta”, inconstitucional desde sua publicação. A matéria foi apreciada pelo STF no RE nº 346.084 [2], afastando a tese da constitucionalização superveniente, eis que inexistente no Direito brasileiro.
Interessa a este assunto o seguinte trecho do voto do ministro Celso de Mello:
“Não custa assinalar, neste ponto, que traduz situação de inconstitucionalidade a edição, pelo Estado, de lei ordinária quanto esta é editada para regular matéria posta sob reserva constitucional de lei complementar, como sucede com o Código Tributário Nacional, cujo artigo 110 — ao veicular norma de caráter geral — conforma-se ao que dispõe o artigo 146, III da Constituição da República.
Cabe referir, neste ponto, por oportuno, que a lei ordinária — que incursiona em domínio normativo constitucionalmente reservado à lei complementar — incide, por efeito de direta transgressão ao que prescreve a própria Constituição da República, em situação de evidente inconstitucionalidade, como reconhece o magistério da doutrina (GERALDO ATALIBA, ‘Lei complementar na Constituição’, p. 30, 1971, RT; JÓSÉ SOUTO MAIOR BORGES, ‘Lei Complementar Tributária’, p. 34/35, 1975, RT/EDUC; CELSO BASTOS, ‘Lei Complementar’, p. 16/17, 1985, Saraiva, verbi gratia).
Esse entendimento reflete-se, por igual, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, cuja orientação, no tema, adverte que infringe a Constituição, ofendendo-a de modo frontal, a lei ordinária — ou qualquer outro ato de menor hierarquia normativa — que disponha sobre matéria própria de lei complementar (RTJ 105/909 — RTJ 154/810-811 — RTJ 163/543-544 — RTJ 163/942-943 — RTJ 166/917-918 — RTJ 171/753-754 — RTJ 179/114-115).
Veja-se, portanto, qualquer que seja o ângulo sob o qual se analise a controvérsia, que o diploma legislativo em causa reveste-se de inconstitucionalidade, especialmente se examinado o texto da Lei nº 9.718/98 à luz da redação primitiva do artigo 195, I, da Constituição da República (anterior, portanto, ao advento da EC 20/98), tal como por mim precedentemente assinalado neste voto, e igualmente enfatizado, com absoluta correção, nos doutos votos proferidos pelos eminentes ministros Cezar Peluso, Marco Aurélio e Carlos Velloso.
Cabe registrar, de outro lado, senhora presidente, considerada a modificação introduzida no conteúdo primitivo do artigo 195, I, da Constituição, que não se revela aceitável nem acolhível, para os fins postulados pela União Federal, o reconhecimento de que a EC 20/98 poderia revestir-se de eficácia convalidante, pois — como ninguém ignora — as normas legais que se mostram originariamente inconciliáveis com a Lei Fundamental não se convalidam pelo fato de emenda à Constituição, promulgada em momento posterior, havê-las tornado compatíveis com o texto da Carta Política.
Se o Poder Público quiser proceder de acordo com o teor de superveniente emenda à Constituição, deverá produzir nova legislação compatível com o conteúdo resultante do processo de reforma constitucional, não se viabilizando, em consequência, a convalidação de diploma legislativo originalmente inconstitucional.
Cumpre advertir, por isso mesmo, que a superveniência de emenda à Constituição, derivada do exercício, pelo Congresso Nacional, do poder de reforma, não tem o condão de validar a legislação comum anterior, até então incompatível com o modelo positivado no texto da Carta Política”.
Destaca-se o curto trecho por amor à brevidade [3]. O que se pode aproveitar aqui é que, se o Supremo Tribunal Federal reconheceu a demanda por lei complementar para regulamentar no novo Difal-ICMS, declarando a inconstitucionalidade do Convênio nº 93/2015 por ofensa ao artigo 146, I, e ao artigo 155, §2º, XII, não poderia a lei estadual, sem ser precedida da lei complementar, regular o Difal-ICMS justamente por invadir a competência do legislador complementar.
Então tem-se vício formal que torna as leis estaduais produzidas antes da LC nº 190/2022 inconstitucionais, de modo que não impediriam a cobrança do Difal apenas em 2022, mas também nos anos seguintes se não houver novas leis estaduais tratando do tema ainda neste ano. Com isso, demonstra-se que, muito embora a publicação tardia da LC nº 190/2022 não respalde o argumento da ofensa à anterioridade, impôs derrota às leis estaduais recentes, haja vista que são anteriores à lei nacional, o que as fez versar sobre matéria reservada ao Congresso Nacional.
[1] Lei nº 20.949/2021 — PR, Lei nº 17.470/2021 — SP, Lei nº 1.608/2021 — RR, Lei nº 8.944/2021, Lei nº 17.625 — PE, Lei nº 7.706/2021 — PI, MP nº 29/2021 — TO, Extra oficial — CE, Lei nº 14.415/2021 — BA, Decreto nº 48.343/2021 — MG, Extra Oficial — RN.
[2] “CONSTITUCIONALIDADE SUPERVENIENTE — ARTIGO 3º, §1º, DA LEI Nº 9.718, DE 27 DE NOVEMBRO DE 1998 — EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 20, DE 15 DE DEZEMBRO DE 1998. O sistema jurídico brasileiro não contempla a figura da constitucionalidade superveniente. TRIBUTÁRIO — INSTITUTOS — EXPRESSÕES E VOCÁBULOS — SENTIDO. A norma pedagógica do artigo 110 do Código Tributário Nacional ressalta a impossibilidade de a lei tributária alterar a definição, o conteúdo e o alcance de consagrados institutos, conceitos e formas de direito privado utilizados expressa ou implicitamente. Sobrepõe-se ao aspecto formal o princípio da realidade, considerados os elementos tributários. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL — PIS — RECEITA BRUTA — NOÇÃO — INCONSTITUCIONALIDADE DO §1º DO ARTIGO 3º DA LEI Nº 9.718/98. A jurisprudência do Supremo, ante a redação do artigo 195 da Carta Federal anterior à Emenda Constitucional nº 20/98, consolidou-se no sentido de tomar as expressões receita bruta e faturamento como sinônimas, jungindo-as à venda de mercadorias, de serviços ou de mercadorias e serviços. É inconstitucional o §1º do artigo 3º da Lei nº 9.718/98, no que ampliou o conceito de receita bruta para envolver a totalidade das receitas auferidas por pessoas jurídicas, independentemente da atividade por elas desenvolvida e da classificação contábil adotada” (RE 346084, relator(a): ILMAR GALVÃO, relator(a) p/ Acórdão: MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/11/2005, DJ 01-09-2006 PP-00019 EMENT VOL-02245-06 PP-01170).
[3] O voto merece ser lido em sua integralidade, especialmente porque cita doutrina nacional relevantíssima sobre a invasão de competência do legislador complementar.
Fonte: ConJur