Como recente decisão do STJ dificulta ainda mais a segurança jurídica, a gestão empresarial e o cotidiano das execuções fiscais.
Gerir empresas no Brasil não é simples. O adágio segundo o qual “não há certeza nem mesmo no passado” tem se comprovado cada vez mais verdadeiro, especialmente no cotidiano tributário.
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), por sua 1ª Seção, decidiu questão processual de nome complexo, mas de fácil entendimento: não se admite arguição de compensação em sede de embargos à execução fiscal, ainda que pretérita ao feito. Na prática, um exemplo ajuda a compreender.
Imagine que alguém possua créditos contra o Fisco porque pagou tributo a maior, ou porque foi declarada a inconstitucionalidade da cobrança. Havendo lei autorizativa, o contribuinte pode compensar esses valores com tributos do mesmo ente fiscal. Mas, se o “leão” alegar que esse crédito não existia (ou era insuficiente para zerar o débito) e não acolha os contra-argumentos do contribuinte, a diferença a pagar será cobrada judicialmente, no rito da execução fiscal.
Visto o cenário, podemos conversar sobre a decisão que, ao nosso ver, perdeu a oportunidade de pacificar conflitos e vai estabelecer imenso tumulto nos tribunais de todo o país. Além de, em nossa humilde opinião, não ser a mais adequada tecnicamente.
Quando se diz que o contribuinte é citado em execução fiscal, este, além de tomar conhecimento da cobrança judicial, identifica a origem da dívida e é obrigado a oferecer garantia integral em cinco dias como requisito para se defender da cobrança, sob pena de bloqueio de seus bens. Sua defesa não é feita no próprio processo, pois, a dívida tem presunção de liquidez e certeza: assim, o contribuinte deve ajuizar outra ação (os “embargos à execução”), de sua iniciativa, que será distribuída por dependência à execução.
Ora, já vimos que a dívida é cobrada por um único motivo: o Fisco não reconheceu o crédito declarado pelo contribuinte, no bojo de rito previsto em lei. Repetimos que essa compensação precisa de lei, para enfatizar que seu efeito é o de abrir situação excepcional de extinção da dívida. Não fosse a lei, valeria a regra geral que conhecemos até em pequenos acidentes de trânsito: “cada um paga o seu”.
Aqui podemos começar a ver as principais regras que permeiam a discussão.
Em primeiro lugar: a Lei de Execuções Fiscais, redigida em 1980, afirma que “não será admitida a reconvenção, nem a compensação” nos embargos à execução. Parênteses: a “reconvenção” equivale ao jargão popular “invertida”, porque nela o devedor diz que também tem valores contra o credor, muitas vezes em valores superiores ao cobrado. A “compensação”, como se sabe, é o velho argumento de quitação mútua.
Isso nos permite apresentar a crítica à decisão do STJ. Ao julgar que a vedação legal à “compensação” inclui a situação excepcionalmente autorizada por lei e que representa a única razão para aquela dívida, equiparou-a ao simples argumento de “veja aqui, eu tenho um precatório que o Fisco nunca me pagou” ou “descobri que tenho um crédito que diminui minha dívida”. A lógica da lei é simples: os embargos à execução só podem dizer respeito ao que integra a cobrança. Apesar disso, o STJ decidiu que os embargos só podem dizer respeito ao tributo em si, antes de sua quitação. Aí surgem os contrassensos.
Primeiro: a lei que autoriza compensação exige confissão da dívida pelo contribuinte. Ora, se a dívida foi voluntariamente confessada, simplesmente não há defesa de mérito. Segundo: inadmissíveis os embargos, o contribuinte terá que ajuizar ação para, em “processo de conhecimento”, defender a existência do seu crédito, requerendo sua distribuição por dependência à execução fiscal. Ora, os embargos constituem precisamente isso: processo de conhecimento distribuído por dependência à execução fiscal. Terceiro: nas maiores comarcas (o que reflete no número de litígios em curso), a competência para apreciar os embargos é do juízo da execução, diferente das demais ações de rito comum. Ora, em vez de simplificar o trabalho das já assoberbadas serventias (o que torna o processo mais ágil), a decisão vai exigir ‘pontes’ entre juízos, com ofícios entre eles comunicando cada decisão; e se houver incorporação de empresas, é relativamente previsível que a execução da incorporada vá correr em um Estado e a ação ordinária que discute o crédito compensado, em outro.
Em suma, até mesmo o Fisco corre risco de sofrer mais para ser pago, caso ganhe a discussão.
Mas, além dos contrassensos, surgem injustiças. Sabemos onde vivemos. Ninguém em sã consciência duvida que o Fisco vá alegar, após anos de milhares de processos em curso, laudos periciais que reconhecem a existência do crédito (e mostram que o Fisco errou ao negar sua existência ou montante), sentenças, Acórdãos etc., que aqueles embargos à execução devem ser extintos “sem julgamento do mérito” porque eram “inadmissíveis desde a origem”. Assim como não se duvida que o Fisco venha dizer que o contribuinte perdeu o crédito, porque não lhe cobrou judicialmente “do jeito certo”.
Vão agora os contribuintes levantar riscos, apurar valores, gastar mais para ajuizar as tais ações de rito comum (nem que seja para se resguardar), ponderar litispendência etc., ao mesmo tempo em que são bombardeados pelos jargões de “predisposição à sonegação fiscal”, “as empresas não pagam a dívida ativa, prejudicando o povo”, entre outros. Seu único erro terá sido cumprir a lei para receber uma dívida que o Fisco, pior dos pagadores, tem a seu favor, mas se negou a reconhecer.
O STJ, em sua missão de pacificar conflitos, parece ter falhado grosseiramente. Errar é humano, temos certeza disso. Mas não podemos deixar de apontá-lo, tampouco as consequências do erro, até para ajudar na sua correção. Ainda há tempo.
Fonte: JOTA