Mesmo publicado há mais de 12 anos, o novo Código Florestal ainda suscita muitas dúvidas e insegurança jurídica. A Lei nº 12.651, publicada em 25 de maio de 2012, foi submetida ao exame de constitucionalidade pelo STF no julgamento das ADI’s: ADC 42, ADI 4.901, 4.902, 4.903 e 4.937, sendo recepcionada pela Constituição, mesmo as decisões da Justiça não sendo harmônicas.
Os ambientalistas apoiados pelo Ministério Público tentaram de todas as formas impedir a aplicação da novel legislação. Sob o pretexto de haver retrocesso ambiental, sustentavam que a lei nova não poderia retroagir para regularizar os passivos ambientais, que deveriam seguir o código revogado, Lei nº 4.771/65, em obediência ao princípio do tempus regit actum.
Precisou o STF intervir para dar efetividade à nova lei ambiental, e várias reclamações constitucionais, 39.991, 42.711, 43.202, 42.889, 38.764, 58.519, 42.889, 43703, 44.645, dentre outras, foram acatadas pela Suprema Corte para anular as decisões que afastavam a aplicação da Lei 12.651/2012.
Superada a batalha pela aplicação do novo Código Florestal, agora os proprietários rurais enfrentam um martírio para fazer valer o direito de dispensa da reserva legal, prevista no artigo 68 da Lei 12.651/2012.
Embora o dispositivo legal tenha tido sua constitucionalidade reconhecida pelo STF [1], estamos presenciando algumas decisões acatando a tese de que o Código Florestal de 1934 já previa a obrigação do proprietário reservar 25% do imóvel da vegetação existente, nos termos do Decreto 23.793/1934:
Art. 23. Nenhum proprietário de terras cobertas de matas poderá abater mais de três quartas partes da vegetação existente, salvo o disposto nos arts. 24, 31 e 52. [2]
Com base nesse entendimento, têm-se deixado de aplicar a regra do artigo 68 sob a premissa de que seria obrigatório reservar um quarto do imóvel da vegetação existente em 1934.
Segundo os defensores desse posicionamento [3], caberia ao proprietário a prova de que o imóvel rural não tinha vegetação antes de 1934. Somente assim poderia ver reconhecido seu direito de dispensa da reserva legal.
Em nossa opinião, esse posicionamento está lastreado numa premissa equivocada, senão vejamos.
O Código Florestal de 1934 é tido como a primeira legislação florestal a tratar especificadamente do assunto e elevou as florestas como bem de interesse comum:
Art. 1º. As florestas existentes no território nacional, consideradas em conjunto, constituem bem de interesse comum a todos os habitantes, do país, exercendo-se os direitos de propriedade com as limitações que as leis em geral, e especialmente este código, estabelecem. [4]
O Decreto 23.793/1934 rompe um liberalismo instituído pela nova República instituída em 1889 e revela uma intervenção do Estado na propriedade rural. Antes, não havia qualquer controle na exploração das florestas, e o governo Vargas, sofrendo os efeitos da quebra da bolsa norte americana e a grande depressão de 1929, que afetou de sobremaneira os cafezais brasileiros, editou o Código Florestal visando a transformar o campo e adaptá-lo a uma nova política industrial que deveria priorizar a silvicultura e as indústrias de base. A nova legislação era produtivista [5] e não se tratava de uma legislação propriamente “ambiental”.
A norma foi editada para promover a substituição das florestas nativas, que se dividiam em florestas homogêneas de araucárias no Paraná e Santa Catarina, e em florestas heterogêneas que estavam no restante do País, maioria da vegetação nativa brasileira.
Florestas só seriam preservadas por lei
O Código Florestal estabelecia que a maioria das florestas seriam de “rendimento”. Ou seja, salvo as florestas protetoras assim determinada por lei [6], todas as demais poderiam ser exploradas [7], e é aqui que reside o maior equívoco em relação a vegetação nativa que deveria ser preservada.
É utilizada como premissa absoluta que os imóveis rurais só poderiam suprimir 75% da floresta nativa existente, consoante o artigo 23 do Decreto 23.793/34 (Código Florestal de 1934). Contudo, ignora-se que o referido diploma legal permitia a exploração de 100% do imóvel:
Art. 51. É permitido aos proprietários de florestas heterogêneas, que desejarem transformá-las em homogêneas, para maior facilidade de sua exploração industrial, executar trabalhos de derrubada, ao mesmo tempo, de toda a vegetação que não houver de subsistir, sem a restrição do art. 23, contanto que, durante o início dos trabalhos, assignem, perante a autoridade florestal, termo de obrigação de replantio e trato cultural por prazo determinado, com as garantias necessárias. [8]
Portanto, as florestas nativas podiam ser integralmente substituídas dentro da propriedade, por outras formas de vegetação, e era exatamente esse o objetivo do Código Florestal de 1934, conforme bem asseverado pelo professor Ely Bergo de Carvalho, especialista em história ambiental, catedrático da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais):
“De toda forma, a lei incentivava a substituição da “caótica” floresta, seja a homogênea ou a heterogênea, por uma “natureza nova”, “melhorada” pelo ser humano. A floresta “melhorada” era a floresta controlada e produtiva; a floresta ideal era a produzida pela silvicultura.” [9]
O ilustre professor confirma que era possível o desmatamento total do imóvel, vejamos:
A exploração intensiva era permitida nas florestas heterogêneas, o tipo de floresta mais comum no Brasil, e admitia o corte raso em ¾ partes das florestas existentes na propriedade na data em que o Código entrou em vigor. Isso significa que, de acordo com o artigo 23, um proprietário poderia derrubar 75% das matas da sua propriedade desde que elas não estivessem enquadradas como ‘florestas protetoras’ ou ‘remanescente’. […] Mas se isso não bastasse, há um outro artigo que permitia a exploração dos 25% restantes, caso eles não estivessem enquadrados como ‘floresta protetora’ ou ‘remanescente’. (pág. 5/6)
No que concerne à possibilidade de desmatar, legalmente prevista no Código, deve-se ter em conta que o Código visava manter a cobertura florestal, e não exatamente as florestas. Dessa forma, as florestas, seja a mata de araucária ou as outras, poderiam ser totalmente substituídas por florestas artificiais. E, conforme o artigo 53, mesmo as “florestas protetoras e as remanescentes, que não constituírem parques nacionais, estaduais ou municipais,” poderiam “ser objeto de exploração limitada” (BRASIL 1949, art. 53). Além disso, as falhas do Código Florestal logo se evidenciaram. Um proprietário poderia cortar madeiras de lei valiosas e alegar que tinha cumprido a sua obrigação de replantar simplesmente permitindo que nascesse capoeira em seu lugar. Os tribunais decidiam que um proprietário que havia reduzido a floresta em sua terra a um mínimo de um quarto podia então vender esta fração com floresta; o novo proprietário desfrutaria de direito de derrubar três quartos de sua aquisição – e assim por diante, até, provavelmente, o último broto de árvore. As firmas industriais facilmente se furtavam à sua obrigação de replantar contratando empreiteiros independentes, que não eram sujeitos pelo código.[10] (pág. 7/8)
Conforme bem relatou o historiador, até mesmo os próprios tribunais autorizavam a supressão total da floresta nativa.
Evidente, que não se pode estabelecer como premissa ou marco legal a obrigatoriedade de se preservar 25% do imóvel durante a vigência do Código Florestal de 1934. Afinal, como visto essa obrigação não era absoluta e sim relativa, logo não pode servir de pretexto para impedir que o proprietário rural tenha seu direito a dispensa da reserva legal reconhecido, com base no artigo 68 da Lei 12.651/2012.
A obrigatoriedade em deixar uma parte do imóvel rural como reserva legal só foi instituída com a Lei nº 4.771/65, que estabeleceu em seu artigo 16, que as derrubadas das florestas nativas só seriam permitidas, desde que respeitado o limite mínimo instituído de 20% do imóvel. Com a advento da Lei 7.803 em 1989, a Medida Provisória 2.166-67/2001, e finalmente a Lei nº 12.651/2012, esses percentuais variam de 20% até 80%, de acordo com a região onde está situado o imóvel.
Pela análise dos citados dispositivos legais, para a dispensa da reserva legal, sob fundamento no artigo 68 da Lei nº 12.651/2012, deve ser utilizado o marco legal da Lei nº 4.771/65, quando de fato foi instituída a obrigatoriedade de reserva legal no imóvel, e não com base no Decreto 23.793/1934, conhecido como Código Florestal de 1934.
[1] Art. 68 (Dispensa de os proprietários que realizaram supressão de vegetação nativa respeitando os percentuais da legislação revogada se adaptarem às regras mais restritivas do novo Código Florestal): A aplicação da norma sob a regra tempus regit actum para fins de definição do percentual de área de Reserva Legal encarta regra de transição com vistas à preservação da segurança jurídica (art. 5º, caput, da Constituição). O benefício legal para possuidores e proprietários que preservaram a vegetação de seus imóveis em percentuais superiores ao exigido pela legislação anterior, consistente na possibilidade de constituir servidão ambiental, Cota de Reserva Ambiental e outros instrumentos congêneres, traduz formato de política pública inserido na esfera de discricionariedade do legislador; Conclusão: Declaração de constitucionalidade do artigo 68 do Código Florestal;
[2] Redação original do Decreto 23.793/34.
[3] Embargos Declaratórios nº 1000900-61.2021/50000, 1ª Câmara Reservado Meio Ambiente: “O DF nº 23.789/34 exigia licença da autoridade para supressão de vegetação e conservação de 25% das matas em cada propriedade”. Decisão no Processo n. 3005314-34.2013.8.26.0481: “comprovarem o respeito ao marco legal de 1934 (item 1, do §1º, do artigo 27 da Lei Estadual 15.684/15), caso insistam no reconhecimento de seu direito à não recomposição da vegetação suprimida (art. 68 da Lei Federal n. 12.651/12).”
[4] Redação original do art. 1º do Decreto 23.793/34
[5] Ely Bergo de Carvalho – O Código Florestal Brasileiro de 1934 – pg. 4
[6] Art. 10. Compete ao Ministerio da Agricultura classificar, para os effeitos deste codigo, as varias regiões e as florestas protectoras e remanescentes, localizar os parques nacionaes, e organizar florestas modelo, procedendo para taes fins, ao reconhecimento de toda a area florestal do paiz.
[7] Art. 53. As florestas protectoras e remanescentes, que não constituirem parques nacionaes, estaduaes, ou municipaes, poderão ser objecto de exploração limitada.
[8] Redação original do Decreto 23.793/34
[9] Artigo Publicado – “O Código Florestal Brasileiro de 1934: a legislação florestal nas disputas pelo território, um estudo de caso” – pág. 6, fonte: https://seer.ufrgs.br/anos90/article/download/47974/39224
[10] Artigo Publicado – “O Código Florestal Brasileiro de 1934: a legislação florestal nas disputas pelo território, um estudo de caso” – pág. 5/8, fonte: https://seer.ufrgs.br/anos90/article/download/47974/39224
Fonte: Conjur