Adjetivar a realidade tributária no Brasil como “manicômio” [1] não gera surpresa para aqueles que a conhecem, e os números do contencioso fiscal vaticinam tal afirmativa: apenas no Carf os valores em discussão são próximos a 10% do PIB [2]. Se também se considerar as DRJs e o Judiciário, esse percentual chega a aproximados 75% — e só cresce [3].
Os seguintes fatores circunscrevem a referida realidade: (1) o tempo de duração dos processos administrativos e judiciais e (2) os reflexos de tais processos no orçamento público. Quanto ao primeiro ponto, de acordo com o TCU [4], o tempo médio de duração de um processo tributário é de 15 anos. Relativamente ao segundo, em média 21% dos autos de infração são cancelados administrativamente no âmbito da União e os créditos decididos nessa esfera em favor do Fisco tiveram adimplência de apenas 5%. Esses números demonstram que a receita tributária muito dificilmente é auferida pelo ente público em curto ou médio prazo, o que é agravado pela cultura dos parcelamentos especiais, os quais já se mostraram ineficientes [5].
O reflexo desse cenário na realidade social é direto: se as receitas tributárias são a principal fonte de custeio do Estado, é certo que tal contingente dificulta a efetivação de ações de interesse público primário, especialmente quanto à saúde, educação e assistência social, vetores do desenvolvimento socioeconômico almejado pela nossa Constituição Cidadã.
Na busca por maior eficiência na arrecadação, os institutos para a satisfação do crédito tributário vêm sendo repensados [6], com destaque para a transação, que, embora prevista desde a edição do CTN, foi regulada apenas em 2020 pela Lei nº 13.988 em âmbito federal, cujas regras perfazem o objeto deste artigo no que se refere à transação tributária individual ou subjetiva.
A transação tributária revela o avanço de três movimentos. O primeiro, marcado pela tentativa de superação da administração burocrática pela gerencial, cuja essência fora materializada na reforma administrativa promovida pela Emenda Constitucional nº 19/1998, a qual inseriu expressamente a eficiência [7] como princípio da atuação estatal e, portanto, como parâmetro de legitimidade dos atos administrativos. O controle de resultados passou a ser basilar, o que propiciou a evolução do conceito de interesse público para dimensionar a sua indisponibilidade e, logo, os limites da consensualidade. Com a nova acepção, o custo de oportunidade de concessões passa a nortear a relação entre fisco e contribuintes, recai no segundo movimento ao qual se referiu, consubstanciado na mudança de paradigma dessas relações, que caminha para a colaboração/cooperação ao invés da macrolitigância [8].
O terceiro movimento é de natureza processual, especialmente sob o amparo do CPC de 2015, em que o sistema multiportas é um de seus pilares. A solução materialmente efetiva e preferencialmente consensual da lide passa a ser objetivo primordial do ordenamento, em prestígio ao direito fundamental da duração razoável do processo e ao princípio da eficiência, o que, em teoria, tende a contribuir para a redução da litigiosidade. A Lei nº 13.988/2020 determina a observância de tais preceitos em seu artigo 1º, § 2º [9], o que revela o arrefecimento do modelo meramente arrecadatório.
A atual realidade é marcada por gasto público em processos que demoram muito a serem revertidos para a União (quando o são). Muitos lançamentos são cancelados no seu mérito, enquanto outros são anulados por violação a preceitos normativos que operam no plano processual, sobretudo no plano das nulidades relativas e absolutas, previstas para a esfera administrativa nos artigos 53 a 55 da Lei nº 9.784/99, e, para a esfera judicial e subsidiária e supletivamente àquela, nos artigos 276 a 283 do CPC.
De acordo com as sobreditas regras, é possível perceber que as nulidades que não importarem violação à ordem pública e prejuízo às partes são convalidáveis, de sorte que o processo seguirá o seu curso e tende a não ter a sua duração dilatada. Por outro lado, as nulidades absolutas podem interferir neste ponto, especialmente porque não são alcançadas pela preclusão temporal. Ou seja, caso verificada uma nulidade absoluta, esta pode ser arguida a qualquer tempo e, talvez, reconhecida em última instância judicial, após, quiçá, duas décadas de tramitação.
Tais nulidades têm um papel importante, tanto no aspecto material quanto no processual, isto porque a inobservância dos requisitos legais para a constituição do crédito implica a nulidade deste, com atribuição de efeitos retroativos (ex tunc) à decisão que reconhece tal vício [10], diferentemente do que ocorre nos casos de revogação, a qual é pautada por juízo de conveniência e oportunidade [11], produzindo efeitos ex nunc.
Feito esse breve parêntese, convém agora retornar à transação tributária. Para otimizar o cenário da arrecadação, é desejável não apenas a análise da realidade econômica do contribuinte, mas também do potencial (in)sucesso da matéria controvertida, e nesse contexto a transação surge como eficiente canal.
Na transação tributária subjetiva (ou customizada, parafraseando Paulo Conrado), tais aspectos são analisados com maior atenção para definir os incentivos que podem ser concedidos ao contribuinte, a fim de que o pagamento do crédito tributário seja viável [12]. Os descontos são restritos aos valores considerados irrecuperáveis ou de difícil recuperação [13], sendo a redução do montante principal do crédito expressamente vedada pelo artigo 11, § 2º, inciso I, da Lei nº 13.988/2020.
Diante dos efeitos acerca do reconhecimento da nulidade, entende-se que a vedação trazida na Lei nº 13.988/2020 quanto à impossibilidade de reduzir o montante principal do crédito não impediria o seu cancelamento diante de nulidades absolutas e dos efeitos ex tunc de tal declaração. Sob a ótica da eficiência e da duração razoável do processo prestigiadas na lei ora examinada, é desejável que as nulidades sejam avaliadas pela PGFN e/ou pela RFB para mensurar a pertinência de se insistir na cobrança, pois, ainda que se admita a procedência da exação na descrição do fato tributável, esta pode não subsistir acaso reconhecida uma nulidade absoluta.
Para ilustrar o que se alega, tome-se o seguinte exemplo: o contribuinte opta pelo lucro presumido no início do ano-calendário, mas, no decorrer deste, ultrapassa o limite de receita bruta de R$ 78 milhões. A autoridade fiscal, ainda que a migração para o lucro real tenha sido incontestável, efetua o lançamento segundo as regras do lucro presumido. O contribuinte perde o prazo para impugnação, com a consequente inscrição em dívida ativa e cobrança pela PGFN. Seria lógico admitir que recursos públicos sejam gastos por aproximadamente mais de uma década, inclusive com possibilidade de condenação da União ao pagamento de honorários sucumbenciais em situação como essa? Isso parece ser contrário ao interesse público, aqui entendido como interesse público primário.
Outro exemplo. Imagine-se que o contribuinte ajuíze ação ordinária para anular decisão proferida pelo Carf que deixou de analisar recurso especial por entender pela indevida pertinência do acórdão paradigma apresentado. Como visto introdutoriamente, a duração média do processo tributário é de 15 anos ao se considerar as esferas administrativa e judicial. Após esse interregno, a decisão administrativa é declarada nula, com a determinação da reabertura da instância administrativa para o recebimento e processamento do recurso especial então interposto pelo contribuinte. Nesse caso, vale a pena ter-se mais 15 anos de custo processual (e ainda sem a certeza do recebimento do crédito debatido), ou seria mais eficiente transacionar a respeito do montante em debate, inclusive com concessões em relação ao valor principal?
Diante desse quadro, resta claro que a análise das nulidades para fins de indução da transação tributária subjetiva atende aos fins propostos pela Lei nº 13.988/2020, sendo hábil à redução da litigiosidade e, consequentemente, tornar a atividade administrativa mais eficiente, na medida em que os esforços serão concentrados em causas potencialmente frutíferas, além de consagrar o dever-poder de autotutela da administração, um maior controle dos seus resultados e um agir estratégico por parte do Ente público, concretizando, assim, a almejada mudança de paradigma na relação existente entre fisco e contribuintes, com maior valorização do valor cooperação.
Fonte: Conjur